Gostaria de falar sobre duas
coisas rápidas, um feijão com arroz básico. Vou tentar temperar direitinho.
Primeiro: Eu nunca entendi qual a
função dos conto infantis tradicionais. Se for só para entreter e atemorizar as
crianças, vá lá, acho que cumprem bem sua missão. Mas me parece que contos
infantis deveriam trazer algo mais, algum ensinamento, talvez uma lição.
Claro que de muitos contos,
conheço apenas traduções de traduções, versões de versões. Chapeuzinho Vermelho
se salva mais ou menos; tenta ensinar obediência. Eu digo tenta, pois quando
criança, esse ensinamento não me comoveu muito. O que me impressionava na
história, eram pessoas inteiras saindo da barriga do lobo.
E os outros contos, o que tentam ensinar? Será
que João e Maria quer ensinar a crianças
abandonadas, sobrevivência na selva? E João e o pé de feijão? Deseja esse conto?
Instruir pivetes na arte de roubar gigantes?
Uma vez li algo sobre o
significado dessas estórias infantis. Creio que foi num livro do Eric Fromm,
mas posso estar misturando as estações. O texto que li, abordava o tema pelo
ângulo do significado oculto. Assim que Chapeuzinho Vermelho falaria sobre a
menstruação, a menina está virando mulher, daí a cor do chapeuzinho. Não lembro
o que se dizia sobre o Lobo Mal, mas dá para imaginar. Quanto à Vovó...
Segundo: Nossa sociedade, como
qualquer outra, tem seus valores. Alguns deles, dividimos com outros povos,
outros cultivamos sós e a mistura de tudo que temos como nossa maneira de ser
nos faz um povo diferente de outros povos.
Um desses valores, eu diria que
é a afetividade. Somos beijoqueiros e abraçadores. Nunca tememos demonstrar
nosso afeto, nosso carinho mesmo que o objeto desse afeto, desse carinho, seja
um desconhecido. Já nos apresentamos aos beijos. Aos dois, aos três, muito
estalados. Se estamos entre os nossos essa afetividade se alastra ainda mais,
muito mais.
Imagino que isso venha de nossa
mistura racial e os outros povos que se formaram da mesma maneira, compartilhem
conosco essa maneira de ser. Carinhosa, afetiva e fraterna.
Mas muito nos diferimos dos
estadunidenses. Isso fica patente quando assistimos um filme americano. Ninguém
nessas fitas se abraça se não tiver um motivo muito grande para isso. Quando o
fazem, e não são namorados, a cena é melosa e falsa. Moças e rapazes apertam as
mãos quando são apresentados. Se forem descolados, nem isso. Nessas
apresentações e despedidas sempre parece que alguém acabou de vender um seguro
ou um carro usado para o outro. Nas comédias estilo “city com” esse tema
aparece muito e os que são um pouco mais carinhosos são tratados como chatos irrecuperáveis
e são evitados.
Agora deixa eu pôr uma farinha
nesse arroz com feijão.
Todavia aquelas estórias
infantis tradicionais continuam sendo lidas e contadas por pais e avós em suas
mais diversas versões. Existe hoje uma tendência às modificações politicamente
corretas para não ofender madrastas, anões, feios, velhos, bruxos e
principalmente animais. Mesmo assim elas continuam fazendo parte do imaginário
infantil. Mas, sem dúvida, o desenho
animado tem hoje muito mais audiência que aqueles contos, estórias e fábulas
que atravessaram gerações. Há muito tempo é assim. Acontece que nos dias de
hoje com a TV por assinatura e seus canais especializados nesse tipo de
diversão infantil 24 horas por dia, a coisa ficou dura pra carochinha.
O mundo infantil de hoje está povoado
por personagens made in usa. Ou seja, produzidos com os valores made in usa. Na
terra de Marlboro não há lugar para afagos ou afetos. O carinho é raro. Salta-se
da grossura para a pieguice mais melosa. Outro dia mesmo eu assistia o Bob
Esponja ser esculachado por ter uma marca de baton que sua avó havia lhe
deixado no rosto. Todos riam dele, lhe diziam queridinho da vovó. Ao Gunball
lhe passou algo pior quando foi obrigado a beijar sua avó Jojô e seus lábios
tocaram os da velhinha; ele ficou traumatizado e seu irmão teve que ser muito
inventivo para salva-lo da catatonia de que foi acometido.
Lá, na terra dos bravos
matadores de índios, o carinho, o afeto, o afago, são mal vistos. Já quando
começam a freqüentar a escola, os garotos rechaçam qualquer demonstração de
afeto materno.
Eu acho que isso vem da formação
religiosa puritana que sempre viu no amor entre as pessoas um empecilho à
adoração de Deus. E nossos pequenos vão mamando esse tipo de concepção da pior
maneira possível: a maneira engraçada.
Agora, quer um ovo frito? Pois
bem.
Muito se tem falado do espaço
que poderá ser aberto para a produção de conteúdo nacional na TV por
assinatura. Eu espero que possamos ver mais de nós mesmos na televisão que tão
caro pagamos. Acontece que não se pode obrigar esses produtores a adotar nem
nossa linguagem nem nossos valores.
Outro dia, meu neto e eu
assistíamos um episódio de Gui e Estopa, produção nacional de desenho animado,
e lá estavam todos os estereótipos americanos que se encontram nas séries
animadas daquele país. Os personagens estavam todos envolvidos com um encontro
amoroso no melhor estilo “date”. Um dos personagens principais e uma outra
personagem seriam apresentados e supostamente namorariam depois. Porém o
cachorrinho, ou sei lá o que é aquele personagem, cometia as gafes que faz
fracassar o encontro amoroso americano: ele sai do banheiro com um pedaço de
papel higiênico preso no sapato, tem algo de comida preso aos dentes e bigode
de groselha. Isso, por lá, é inaceitável numa “date”. Sabemos disso, pelas
séries de TV para adolescentes e desenhos animados para crianças produzidos
naquele pais.
Esse desenho, como já disse, é
brasileiro e seu público alvo são crianças que não devem passar dos 7 anos.
Pelo visto, seus produtores já estão prontos para o futuro, para o fim da
afetividade.
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