Vivemos tempos interessantes,
diria um chinês. Apesar do cerco da mais espessa idiotice, aqui e ali aparecem
brechas por onde passa alguma luz. Claro que operosos cultores da escuridão
logo aparecem com baldes de argumentos supostamente democráticos, vagamente
libertários para tapar qualquer crítica que queira alumiar, arejar e remover a
poeira do estabelecido. É o caso da obra de Monteiro Lobato.
Não faz muito tempo que alguém
chamou a atenção para o conteúdo racista do Sítio do Pica-pau amarelo. Do
tratamento dado à Tia Nastácia. Tudo que é contestado na obra lá está desde
sempre mas só agora alguém tem a coragem de expor. Durante todos esses anos,
autores vêem citando Monteiro Lobato com admiração e dando-o como inspirador e
mentor de suas carreiras literárias. Parece que ficava bonito.
Sem embargo, aquela que criou,
usando trapos e botões, a contestadora boneca Emília e o sábio Visconde de
Sabugosa com uma espiga de milho, é enxovalhada pelo autor. Ainda que seus
quitutes sejam louvados, Lobato refere-se a ela como ser desprovido de
inteligência, quase infantil ou menos que isso pois o menino Pedrinho afronta
os seres de nosso universo mítico com grande desassombro enquanto a negra tem
por eles o terror daqueles que tudo ignoram.
Os que viram os problemas na
obra de Lobato apenas pediram que o Ministério da Educação não a incluísse
entre os livros que compõem a biblioteca infantil que este Ministério distribui
para as escolas. Ninguém falou em queima de livros ou censura. Pediu-se algo
razoável; que não fossem parar nas mãos de crianças de 6 ou 7 anos uma obra que
traz preconceito racial na forma de menosprezo por um de seus personagens.
Acontece que nos achamos diante
do grande homem, do grande escritor. Um ser intocável. Mas não deveria ser
assim. Lobato foi um dos que à época criticaram a criação de uma estatal petrolífera
no Brasil. Americanófilo, preconizava um modelo de exploração de petróleo
baseado na iniciativa privada. Capitalista e empreendedor, a cada fracasso nos
negócios mais sobrava para Jeca Tatu.
Quando afinal resolveu redimir o
caboclo, meteu-lhe umas botinas, curou-lhe das lombrigas e pronto. Nada falou
das condições de sua existência nem de seu salário. Meteu-lhe botinas
medicinais.
Mas se o grande homem não se
mostra tão grande assim, sobrava-lhe a obra literária infantil que alguém
resolveu agora criticar. Os defensores de Lobato não admitem a crítica. Quem o
faz logo é chamado de censor ou algo pior. Mas essa critica é apenas quanto ao
conteúdo manifestamente racista. Creio que a ninguém lhe ocorre tentar diminuir
a enorme contribuição de Lobato para a literatura infantil. Sua obra serviria
de modelo de didatismo e forma para qualquer jovem escritor que quisesse
trilhar o caminho da escrita para crianças. Mas como já disse, não é mais coisa
que se entregue nas mãos de crianças que iniciam a leitura.
Recentemente, ouvi na televisão
uma senhora que dizia que na França o mesmo se dá com os quadrinhos do Tin Tin
que já não são encontrados nas estantes de obras infantis e sim na de adultos
devido ao seu caráter colonialista que uma sociedade que se quer multi-étnica e
multi-racial já não suporta. Um adulto tem como pôr no seu devido contexto o
que ali vem dito, uma criança não.