No ano
2000 fui a Porto Alegre assistir um jogo do Galo contra o Internacional. Me
hospedei num hotel do centro da cidade. Era o tipo de hotel que eu gosto, sem
estrelas nem baratas. Havia feito a reserva desde casa e para minha sorte,
ficava próximo ao local onde é realizada a feira do livro de Porto Alegre. Da
janela do quarto via-se uma linda construção do outro lado da rua com arcos e
uma calçada que se elevava sobre eles. A feira em si, me decepcionou. Pensei
que ocorresse em local fechado, climatizado e com facilidades sanitárias. Acho
que fui levado a pensar assim pela lembrança da Bienal do Livro do Rio e pela
maneira que meus conhecidos gaúchos se referiam à feira. Os gaúchos são
grandiloqüentes e quando falam das coisas do Rio Grande, não economizam em adjetivos. Uma
descrição gaúcha do Rio Guaíba, por exemplo, nos faz crer que existe um
Amazonas meridional ou um Rubicão que caudilhos e gaudérios um dia cruzaram
para criar impérios.
No entanto aproveitei bem a
feira e comprei alguns volumes. Uma bíblia, em cuidadosa edição das Irmãs
Paulinas, que ademais de me dar alguma ilustração nas coisas sagradas, deixou
evidente por suas letras diminutas, que eu estava precisando de óculos. Comprei
também algo de ficção e um livro comemorativo:_Maracanã, 50 anos de glória, de
Renato Sérgio, com bom texto e fotos do estádio em seus maiores momentos. No
ônibus, voltando para casa, estava contente com minhas aquisições literárias e
folheava o livro para não pensar na derrota para o Colorado. Estranhei que só
havia uma foto da Copa de 50. Do gol de Ghiggia. Talvez fosse por problemas de
direito de reprodução ou talvez o autor, diferente de mim, já não quisesse expor
a ferida aberta naquele 16 de julho.
No mesmo ano de minha ida ao Rio
Grande, havia adquirido os serviços de tv por assinatura e justo no dia em que
cheguei de Porto Alegre, o canal Sportv começava a exibir uma série de
programas para comemorar o aniversário do Maracanã. O primeiro episódio, como não
podia deixar de ser, foi sobre a construção do estádio e a copa de 50. Com
fotos, filmes e depoimentos, foi contada a derrota na final para os uruguaios.
As imagens nos são familiares. Ghiggia
que avança pela direita, Barbosa que dá um passo para o meio tentando
antecipar-se ao cruzamento, a bola passando entre o grande goleiro do Vasco e sua
trave esquerda. Ao fim do jogo os jogadores brasileiros que deixam o campo em
lágrimas e na arquibancada uma mulher volta-se para o lado da câmera e seu
rosto é uma máscara de dor e decepção. Não sei quantas vezes vi o rosto da
jovem de 1950 mas toda vez que vejo sinto vontade de abraçá-la e dizer-lhe:_ Eu
também, eu também.
No entanto não há imagem nem
testemunho confiável do que mais me doía em 50:_ O tapa. Diante de 200 mil
pessoas, Obdúlio Varela teria dado um tapa na cara de Bigode. Ninguém viu.
200mil pessoas deviam estar lendo a Revista do Rádio e distraídas, não viram o
uruguaio golpear nosso jogador. Mas a lenda persistiu e me assombrou durante
anos. A simples referência àquele tapa me parecia uma ofensa pessoal e pior, uma nação estapeara outra nação, humilhando-a.
Só mais tarde fui compreender o que significava a criação daquele mito. Para
nossa imprensa, que o criou e alimentou por décadas, o tapa era a comprovação
de nossa inferioridade racial. Pusilânimes, nossos jogadores mestiços, mulatos,
teriam aceitado o tapa dado pelo adversário racialmente superior. A mistura
racial explicava a derrota. Para quem duvidasse, a “falha” de Barbosa era a pá
de cal no assunto. Também no time uruguaio havia mestiços e um negro mas os
mitos desprezam as evidências, mesmo as fotográficas. Durante anos o nome de
Obdúlio me soou odioso. Mais odioso que a cara de fuinha de Ghiggia ou as
feições de oficial nazista de filme americano de Máspoli.
Aos poucos pude extrair alguma verdade
do monturo de tolices que foi publicado sobre a Copa de 50. De Nilton Santos
ouvi que nosso técnico, Flávio Costa, não manjava nada. O oportunismo dos
políticos da época também deu seu contributo para o fracasso e a imprensa, com
seu ufanismo de ocasião, quis ganhar o jogo na véspera dando ao treinador
uruguaio as manchetes que ele usou para motivar seu forte elenco. Agregue-se a
isso a vaidade dos dirigentes esportivos que queriam luzir e retiraram os jogadores da concentração no Joá
levando-os para São Januário onde foram assediados durante todo o dia anterior
ao jogo por jornalistas e toda espécie de sanguessugas do futebol.
Mas foi só no ano 2000 que tive
a certeza de que tudo que aconteceu em 50 dentro das quatro linhas do Maracanã,
foi de uma massacrante normalidade. Em seu depoimento para o programa do Sportv,
Zizinho descreveu o ocorrido com a precisão que aplicava aos seus passes quando
era jogador:_Os uruguaios jogaram melhor e ganharam o jogo. Pronto, era isso. A
seleção brasileira fora derrotada por um adversário que jogara melhor. Não
houvera tapa nem nada que maculasse a vitória uruguaia ou a honra dos
derrotados. Fora um jogo de futebol, nada mais que isso.
Recentemente, assistindo o
“Grandes momentos do esporte” da TV Cultura, fui novamente surpreendido por uma
declaração que Zizinho fizera anos atrás. Dizia Mestre Ziza referindo-se à Copa
de 50, que alguns dos jogadores de nosso time não eram tão bons como se dizia.
O jornalista que o entrevistava nem sequer fez menção de perguntar por nomes.
Não creio que Zizinho os citasse mas era obrigação do repórter perguntar. Na
mesma entrevista dizia o craque que o grande jogador do São Paulo de seu tempo
não fora ele e sim Canhoteiro. Pode-se inferir daí que Zizinho não era homem
vaidoso e portanto sua declaração, a meu juízo, tem crédito. Mesmo sem ter
visto jogar os homens de 50, ao longo dos anos vi muitos jogadores serem super
valorizados. Bem pode ser que entre os daquela seleção também existissem os
desse tipo.
No entanto nada do que vi e ouvi
sobre 50 faz sombra ao maior dos dramas
daquela Copa. Refiro-me à crucificação de Barbosa. Jamais alguém sugeriu
que a falha pudesse ter sido de Ghiggia, que aquela bola deveria ter sido
cruzada e não arremessada ao gol ou que talvez na tentativa do cruzamento o
tiro fora mal desferido indo parar no fundo das redes. De Barbosa lembro do
depoimento que deu poucos anos antes de sua morte. Dizia que no Brasil a pena
máxima era de trinta anos mas ele vinha pagando a sua há muito mais tempo.
Disse isso com a voz débil dos humildes, com o sorriso dos que não podem
impor-se pela revolta mas Barbosa estava gritando por justiça. De outra feita
ouvi-o dizer referindo-se ao gol sofrido naquela final:_Eu fiz o certo e deu
errado, Ghiggia fez o errado e deu certo.
À injustiça sofrida por Barbosa
somou-se outra. Foi preciso passar mais de 20 anos para que outro goleiro
negro, Jairo, vestisse a camisa da seleção brasileira e em copa do mundo só
Dida em 2006.
Quando vencemos os uruguaios na
semifinal da Copa do México, a imprensa de então, muito afinada com a ditadura,
falou em vingança. Nada
mais falso. 50 jamais será vingada, a menos que os uruguaios organizem um
mundial e os derrotemos na final, em pleno Centenário.
Ainda assim, isso nada serviria a Barbosa, a Bigode, a
Zizinho. Aquela copa perdida vai continuar doendo como ferida que nunca
cicatriza. A moça da arquibancada vai seguir sofrendo a derrota interminável.
Eu também, eu também.
Sou Gaúcho e tua definição da soberba dos nascidos nos Pampas está perfeita. Lendo fatos da colonização do Rio Grande do Sul vemos que temos pouca identificação com o Brasil e mais com o Uruguai e a Argentina.Mas não se pode chegar ao extremo de dizer que somos brasileiros por opção pois o Tratado de Tordesilhas nos eliminava do Brasil.Tua cronica sobre a copa de 50 e seus bastidores foi muito bem construída, pois mostra o outro lado da moeda que nós brasileiros gostamos de esconder, ou seja, o outro nunca tem méritos e se ganhou foi porque nosso goleiro falhou.
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