terça-feira, 30 de abril de 2013

O filósofo e a novela



                Muitas vezes, o único que me resta é rir de minha própria ingenuidade. Veja se não é o caso. Até bem pouco tempo eu acreditava que enquanto gastava minha vida assistindo inumeráveis partidas de futebol na TV ou vendo sacanagem na internet, outras forças agiam no universo para deixá-lo inteligível para os pascácios patológicos como eu.
                Cria que enquanto me aborrecia vendo um jogo da seleção espanhola ou apoiava o movimento das sem calcinhas encabeçado pela Britney Spears, pessoas estavam por aí entendendo as barafundas da existência, as circunvoluções do conhecimento, o primado da verdade. Essas pessoas, os filósofos, cuidavam do que eu descuido, pensavam o que minha pouca acuidade ignora.
                Pois bem, outro dia caí num blog assinado pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. O nome do blog é: Blog do Filósofo. Aí fui por ter visto na página do jornalista Luiz Nassif uma matéria na qual o comentarista de economia dizia-se ofendido pelo filósofo que contra ele fizera acusações. Dizia o jornalista que irá processá-lo e escrevia seu título entre aspas. (Suma ofensa). Os leitores de Nassif o apoiavam nos comentários e diziam cobras e lagartos de Ghiraldelli. Não resisti e fui ver os escritos do tão apedrejado filósofo.
                E do que tratava em seu blog o discípulo de Platão? Da novela. Pois é, ele falava da novela. Ghiraldelli usava o folhetim da Globo como referência. Não recorria à tragédia grega, nem à Sheakspeare nem à Machado de Assis. Não, o filósofo citava a novela como fonte de inspiração para suas filosóficas elucubrações.
                O filósofo não deixava dúvidas em seu texto que é íntimo da novela. Não dizia generalidades sobre este tipo de entretenimento. Era específico sobre determinada personagem, procurava dissecar seu caráter, elogiava a atriz que a incorpora. Sem dúvida, segue a trama com interesse.
                Mas Nassif e seus amigos não criticavam o filósofo pelos textos ruins nem pelas abordagens esdrúxulas. Não, o que tanto Nassif quanto seus leitores apontavam como mácula em seu caráter, era o fato de Ghiraldelli postar fotos de sua mulher nua ou seminua na internet.  Cada um tinha seu reparo específico sobre Ghiraldelli, mas esse fetichismo do filósofo era unanimemente comentado.
                Claro que os comentários de Nassif e seus leitores não me causaram surpresa. Há tempos que já me desiludi com os jornalistas e desde sempre soube da caretice e do moralismo rastaqüera de nossa sociedade, mas filósofo assistindo novela é demais.


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Em módicas mensalidades, o pentelhésimo de segundo


                A propaganda é algo direto, de compreensão fácil. É feita para atingir a fatia de mercado que supostamente irá querer e poder adquirir determinado produto, independente de sua capacidade intelectual ou cognitiva. Pelo menos era assim. Hoje, com as novas tecnologias, algo mudou.
                Muitas vezes eu tenho de prestar atenção à TV para entender o que querem me vender. Os aparelhos e serviços modernos são anunciados numa linguagem cifrada, cheia de siglas, letras soltas e palavras em inglês. Supostamente todos entendem, pois esse comércio anda de vento em popa apesar de serviços como a banda larga serem caríssimos, em comparação com outros países, e de funcionarem mal e porcamente.
                No espaço de tempo entre o lançamento de uma nova tecnologia e outra, que vai deixar o que você comprou, 6 meses atrás, totalmente obsoleto, a propaganda ajuda a vender o que pensávamos que já nos pertencia.
                Um comercial, que foi veiculado há uns meses atrás, mostrava um rapaz diante de um lap top ou notebook (não sei qual é a diferença), ele ri de algo que viu na tela e uma fração de segundo depois, os que estão à sua volta, também manipulando engenhocas, riem. O locutor fala algo e na cena seguinte o mesmo rapaz está diante de outro aparelho e comemora um gol que o outro personagem em cena, olhando para outra tela mágica, tarda um pentelhésimo de segundo para também comemorar. E era isso o que estava à venda: o pentelhésimo de segundo. Não se falava de menor preço de tarifa nem de maior alcance, ou melhor, falava-se, mas sabendo que ninguém acredita mais. O produto vendido era o pentelhésimo de segundo. Nisso o reclame punha toda a ênfase.
                Hoje, empresas, pessoas e conglomerados de informação tentam nos convencer que teremos alguma vantagem competitiva (esse é o termo empregado mesmo quando se trata de crianças de 5 anos que começam seu curso de inglês) se estivermos à frente dos outros por uma fração pentelhesimal de tempo.
                Mas, à frente em quê? Não se sabe ao certo.
                Outro dia, num programa de TV no qual convidados “ilustres” contam suas experiências para jovens estudantes do curso secundário, Marcelo Tass, a nulidade mais entrevistada do país, dizia aos colegiais que hoje, todos estamos defasados e quem não sabe disso é um idiota. Ora, estamos defasados em relação a quê? Isso o minúsculo careca não explicou. Talvez, ao fim de sua fala, quando os estudantes teriam o direito de dirigir perguntas à sumidade, algum espírito menos conformista com as bobagens que são ditas em tom grandiloqüente pelas celebridades célebres, lhe fizesse esse questionamento. Não fiquei no canal para saber.
                Nem a propaganda do serviço de internet nem a fala do apresentador de TV, conseguem chegar sequer ao zero da tolice. Ficam aquém, são contradições claras. Não entre si, pois as duas bobagens se complementam e se afiançam, mas com relação à mais palpável, mais tangível, mais óbvia realidade.
                Nosso problema com o tempo, não será resolvido pelo pentelhésimo de segundo que tentam nos vender. Ele está  relacionado com as horas e horas perdidas no trânsito das grandes cidades, na espera do serviço público de saúde, na fila do banco e do supermercado.




Pacote de abril



                Que o projeto que pretende dificultar a criação de novos partidos é casuístico, não há dúvida. O partido no poder está arregaçando as mangas para a disputa de 2014 e usa desse artifício para impedir que lhe escorra entre os dedos os votos que poderiam migrar do PT para o partido de Marina Silva ou para a fusão que pretendem PPS e PMN. É coisa feita.
                Mas cá entre nós, do jeito que estava não podia continuar. Não é possível que um partido mesmo antes de nascer já tenha uma bancada e desfrute de verbas públicas e tempo de TV (também financiado com verbas públicas) como se tivesse conquistado nas urnas, através de suas propostas e programa, os votos populares. Veja o caso do PSD de Kassab.
                Muitos dos parlamentares que ingressaram nessa sigla foram eleitos pelo DEM. Seus eleitores, quando os elegeram, votaram nitidamente num partido de oposição. E oposição nitidamente de direita. Agora esses parlamentares estão num partido que, segundo seu proprietário, Kassab, não é nem de direita nem de esquerda nem de centro, muito pelo contrário.
                Claro que você poderá argumentar que esses deputados do DEM que caíram de para quedas no PSD são o que de mais fisiológico existe na política brasileira. Muitos deles carregam no currículo, diversas mudanças de partido tão inexplicáveis, sob o ponto de vista ético, quanto essa última. Você está com a razão, com toda a razão. Mas é por isso mesmo que o legislador tem de intervir. Não é mais possível conviver com esses parlamentares de aluguel. Ou por outra: não é possível aceitar suas práticas de braços cruzados. Algo deveria ser feito, mas não desse jeito. Uma lei que poderia ser moralizadora, feita assim a toque de caixa e com destinatário incluído, torna-se um arremedo, um monstrengo.
                 Não resta dúvida que a proposta aprovada na Câmara e agora em discussão no Senado, carrega o ranço da intencionalidade pouco republicana. Ninguém do PT se posicionou de forma tão contundente quando era a oposição de direita que perdia deputados para a sigla inventada por Kassab, pelo contrário. O PSD agora engorda a base de sustentação do governo. Pelo menos, enquanto seus pleitos sejam atendidos pelo Planalto.
                Os propositores do projeto de lei juram de pés juntos que o Executivo nada tem a ver com o embrulho. Acredite quem quiser. Enquanto isso o Ministro Gilmar Mendes, do STF, concedeu liminar suspendendo sua tramitação. O pedido de urgência que seria votado ontem (24/04) na Câmara Alta, ficou para a próxima semana, depois do 1º de maio.
                O que há de pior nessa proposta de alteração da vida partidária, não é seu óbvio fim nem seu casuísmo. O pior é que ela vem misturada num pacote, tal qual caixa de bombons sortidos. Acompanham-na uma PEC que tenta tirar do Ministério Público seu poder de investigar e outra que quer submeter as decisões do Judiciário ao crivo dos parlamentares.
                Quem tem anos nas costas e alguma memória deve estar se lembrando que em 1977 a ditadura militar, quando já se encontrava em processo de falência, nos brindou com um conjunto de leis, que alterava o processo eleitoral para evitar os danos que as urnas prometiam causar ao governo de fato nas eleições daquele ano.. Esse conjunto de leis casuísticas ficou conhecido como Pacote de Abril. O mês parece ser inspirador.


quinta-feira, 18 de abril de 2013

Maconheiros



                Até bem pouco tempo atrás, falar da legalização das drogas era impensável. Este século já havia nascido e pessoas ainda eram presas por usar uma camiseta estampada com uma folha de cannabis. Comerciantes que vendiam uma simples marica ou um narguilê, podiam ser autuados por apologia do delito. Só no ano passado, o STF garantiu o direito dos que defendem o uso legal de drogas de se manifestarem livremente.
                Pois bem, e o que fazemos com essa liberdade? Com esse pedacinho de liberdade? Desbaratamos.
                Tenho lido, não sem assombro, o que postam nas redes sociais os grupos que promovem marchas pela legalização da maconha. O eixo da questão, o direito, vem sendo deixado de lado. O uso medicinal da erva é agora apontado como o fator base para sua legalização. 
                Frases como “maconha cura câncer” aparecem com total irresponsabilidade nessas postagens que também mostram como exemplo, a venda de maconha medicinal em locais públicos dos EE.UU. É a própria apologia da hipocrisia.  Além do mais eu não quero ficar doente para poder fumar maconha, eu quero fumar maconha pra ficar doidão. E quero que me seja garantido, por lei, esse direito.
                Outro fator elencado por esses grupos, é o econômico. Numa postagem recente defendia-se o uso da erva como combustível. O contrassenso é demasiado gritante para merecer um comentário.
                Também há comparações entre a maconha e o álcool. Para santificar a erva, querem demonizar a bebida. A carga de preconceito contra quem bebe, por parte dos defensores da legalização da maconha, é a mesma que a sociedade careta, que apóia a proibição do uso de drogas, tem com relação aos maconheiros. Sem tirar nem pôr. Ademais, ninguém vai parar de beber e começar a fumar maconha porque é saudável.






quarta-feira, 17 de abril de 2013

O último bastião



                Outro dia, eu perguntava aos meus botões:_ Até quando o Supremo estará infenso ao poder dos evangélicos que seguem seu avanço rumo ao poder civil no Brasil? Após rápida conferência, a abotoadura respondeu:_ A independência da Corte está por um fio.  
                O pessimismo dos meus botões tem fundamento no sistema de escolha dos ministros daquela colenda Corte. Como sabemos é a Presidência da República quem indica e o Senado  quem referenda, após sabatina, o nome proposto. Não houve na história recente, nenhuma rejeição aos nomes indicados pelo executivo para integrar o STF por parte da Câmara Alta.
                Com o crescimento da bancada evangélica a cada eleição, aumentando seu poder de chantagem sobre o executivo e sua presença no próprio Senado, é de se esperar que uma futura indicação para Ministro do Supremo possa passar pelo crivo daqueles que defendem a forma de pensar medieval.
                 Foi justamente contra as decisões do Supremo em questões como a união civil de pessoas do mesmo sexo, a interrupção da gravidez de anencéfalos e a garantia de manifestação dos que defendem a legalização do uso de drogas, que se insurgiram recentemente os parlamentares evangélicos.
                 Parece óbvio que faz parte da estratégia desse grupo de parlamentares, uma interferência mais direta no judiciário. Isso já se nota nos tribunais de primeira instância. São vários os casos em que magistrados têm dado parecer favorável aos religiosos quando o tema em pauta é a laicidade do estado ou o direito de minorias.
                 No legislativo, especialmente na Câmara dos Deputados, onde exercem seu poder de chantagear com mais desfaçatez, os evangélicos estão no ataque. Projetos de lei oriundos dessa bancada, prometem levar o país à teocracia. O executivo, sempre visando as próximas eleições, vai cedendo aos fundamentalistas em questões que antes eram bandeiras do partido no poder.
                 A última vitória das hostes do santo ofício foi a aprovação, nas comissões da Câmara, de projeto de lei que dá direito às instituições religiosas de impetrarem, junto ao STF, Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Caso seja aprovado no plenário, o que é quase certo, o estrupício irá para o Senado.
Qualquer lei aprovada por assembleias legislativas, câmaras municipais ou pelo Congresso Nacional, poderá ser alvo da sanha de bispos de araque e seus acólitos. Qualquer Valdomiro, Malafaia ou Feliciano poderá contestar a constitucionalidade do trabalho legislativo. Junte-se a isso o fato das igrejas pentecostais terem uma incrível capilaridade. Antes mesmo da chegada do Banco do Brasil, elas montam suas coletorias nos cantos mais remotos do país. O Supremo poderá ter em mãos centenas dessas ações propostas sem fundamento que não seja o bíblico.


segunda-feira, 15 de abril de 2013

Religião e sociedade



                Tem um filme do Jabor, do final dos anos 60 que, sem ser nenhuma obra prima do documentarismo, é muito interessante. O filme tenta mostrar o pensamento da classe média carioca (especialmente da zona sul) através de depoimentos dos personagens que compunham aquela cena. Não há um narrador. Pelo menos nessa questão da forma, é muito moderno. Hoje, me parece, essa é a tendência dos documentários: deixar ao espectador a última palavra, a análise do que é mostrado.
                Numa das cenas do documentário, vemos uma procissão. Creio que no Outeiro da Glória. Como em todas as manifestações católicas, os fieis arrastam suas caras tristes em passos lentos. Um padre, tal qual um chefe de torcida, da desanimada torcida católica, usa um megafone para vituperar contra uma lei que estava em discussão no congresso. Tratava-se de projeto de lei que dava direitos iguais aos da mulher casada às que viviam em concubinato. Creio que o autor do projeto de lei era o Deputado Nelson Carneiro que, anos mais tarde, foi autor do diploma legal que introduziu, com alguns séculos de atraso, o divórcio no Brasil.
                Mas o que queria o megafone de batina que gritava palavras de ordem em favor da família? Coagir os casais “amigados” a submeterem sua união ao crivo da igreja? Impossível no estado laico. Separar os que viviam juntos sem o registro em cartório? Isso seria impensável numa sociedade moderna. Obrigar que aderissem ao casamento oficial? Muitos deles nem poderiam fazê-lo por serem desquitados. Não, o megafone queria apenas negar direitos. Impedir pessoas de terem direitos civis. A rejeição do projeto de lei não traria nenhum benefício à igreja. Os casais de fato não se separariam caso a lei não fosse aprovada nem acorreriam em bandos para a paróquia mais próxima. Se quisessem ou pudessem, já o teriam feito. Os filhos desses casais continuariam sofrendo preconceitos. Sem embargo, o megafone clerical falava em nome da família.
                A lei, que era alvo do esbravejante cura, foi por fim aprovada. A família, não foi esfacelada, como pregava o vigário, o céu não ruiu nem a cólera de Deus caiu sobre a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
                Anos mais tarde assistimos a mesma histeria dos religiosos quando a lei do divórcio foi discutida e aprovada. Falava-se do fim da família, do caos, do inferno, do diabo a quatro.
                Hoje vemos a história se repetir com relação ao casamento igualitário. Se nos idos dos 60 e 70 a igreja católica comandava o coro dos carolas, hoje são os evangélicos que regem a banda do atraso mental. Com uma grande diferença: os católicos se contentavam em orientar seus seguidores e influenciar os políticos, os evangélicos abolem os intermediários e se elegem para, desde os parlamentos do país, tentar impor à nação sua noção do que é certo e do que é errado. Tudo, claro, segundo seu livro mágico.
                Fanáticos e oportunistas da corrente neopentecostal já traçaram sua estratégia de combate ao século 21. Depois de ter sua representação reduzida com o escândalo da máfia das sanguessugas, mostraram incrível poder de reação no pleito de 2010 e praticamente duplicaram sua bancada. A tomada da presidência nas comissões da Câmara com Portela (CLP) e Feliciano (CDHM), a expressiva representação em comissões importantes como a de Constituição e Justiça e os esdrúxulos projetos apresentados por evangélicos de todos os matizes,  apontam para um caminho que e leva direto para a idade média. Os políticos tradicionais, mais ocupados com a rapinagem do erário e com sua perpetuação no poder, tornam-se aliados úteis e facilmente comprados, pois os religiosos têm poder de manipulação sobre milhões de votos populares. Isso sem contar com a bancada ruralista, que em mais de uma oportunidade compartiu interesses com os pastores parlamentares.
                O último bastião da democracia e do estado laico parece ser o Supremo que tem se mostrado infenso ao poder dos evangélicos. Mas até quando?



quinta-feira, 11 de abril de 2013

Dois maridos



                Você deve conhecer a história dos dois maridos, mas dê uma olhadinha, talvez minha versão seja um pouco diferente da que você conhece. Isso costuma acontecer quando essas estórias exemplares são contadas. Bem, talvez você nem goste de estorinhas exemplares. De qualquer maneira, lá vai.

                O primeiro marido era um desses caras que todas as mães sonham para suas filhas. Era da casa pro trabalho e do trabalho para casa. Não bebia nem fumava. Aos domingos não faltava aos almoços na casa da sogra e ouvia pacientemente o grandiloqüente lenga-lenga do sogro e as chulices do cunhado. Resistia estoicamente ao assédio da cunhada metida a santarrona e suportava a voz esganiçada da mãe de sua amada. Elogiava o guisado mais sem graça, a sobremesa mais insulsa. A sogra sorria e pensava: Benza Deus.
                Quando viajava só (a negócios, é claro) nunca se esquecia de trazer a lembrancinha para a cunhada, o mimo para a sogrinha e o regalo para o sogro palrador. E sempre um presente para a mulher. Até o patife do cunhado já recebera um agrado seu na forma de um taco de sinuca desmontável, comprado em Ciudad Del Este. Ademais, progredia na carreira apesar da timidez.
                 O outro marido era justamente o contrário. Nunca chegava em casa no mesmo dia em que saía. No começo do casamento, ainda se dava ao trabalho de inventar desculpas: um serão na loja, um balancete, o velório de um  ex-companheiro. Depois de algum tempo, quando confrontado com o relógio e um “isso são horas?”, apenas sorria um sorriso cínico ou, em dias mais ágrios, soltava um “não enche o saco” e ia curar a ressaca num sono pesado.
                O mísero salário que ganhava, gastava em bebida, cigarros e outras coisinhas mais. O aluguel sempre atrasado. As contas pendentes, com aviso de corte no fornecimento.
                Às sextas-feiras ela já nem o esperava mais. Ele aparecia muito depois do sol de sábado, cheirando a perfume ordinário. O ônibus cheio levava a culpa pelo odor.
                 Um dia, e foi justamente numa sexta-feira, ela estava pensando que nem valia à pena fazer a comida, ia comer um miojo antes da novela e ia deitar cedo com suas mágoas, sabia que o marido só apareceria para o café da manhã. Mas antes das sete ele chegou, e trazia flores. Deu-lhe um beijo de namorado e perguntou pelo jantar. Ela, toda sorrisos, correu à cozinha para preparar algo que fosse do agrado dele. Um suflê de abobrinha, sim, ele adorava seu suflê de abobrinha.
                 Comeram juntos e assistiram a novela, abraçados. Ela lhe explicava o enredo, contava das tramas que os personagens malvados arquitetavam. Estava feliz, de uma felicidade de colegial. Naquela noite dormiram de conchinha. Ele estava perdoado por anos de maus tratos e desdém. As flores e o beijo molhado, o haviam redimido.
                 Nessa mesma sexta-feira, o bom marido chegou em casa as seis e quarenta e cinco, como era de praxe, e não encontrou a mulher, as crianças também não estavam. Telefonou aflito pra casa dos sogros e uma voz seca, que lhe pareceu ser a do sogro, lhe fez saber: _Ela está aqui. E desligou. Para lá foi ele pensando em desgraças sem fim.
                  Ao chegar o sogro abriu-lhe a porta e virou-lhe o rosto. A sogra, com sua voz de taquara rachada, foi mais eloqüente: O senhor, heim Seu Mário, com essa cara de sonso... Ele,  sem nada entender, estava mudo. Só atinou perguntar pela mulher. A sogra indicou, com seu queixo de colher, o corredor que dava acesso aos quartos. No caminho teve de suportar uma piscadela obscena do cunhado e, mesmo aparvalhado, poderia jurar que viu no rosto da cunhada um olhar ainda mais oferecido que sempre.
                   No quarto, que fora seu de solteira, estava a mulher. Tinha os lhos vermelhos e fungava. Antes de reiniciar o choro estendeu-lhe uma carta dizendo: Por que você fez isso comigo? Ele estava atônito quando começou a ler o papel que lhe fora dado. Demorou muito tempo para decifrar o que ali vinha escrito. Por fim, caiu a ficha.
                   Tudo aconteceu quando sua mulher acompanhou a mãe numa estação de águas em Cambuquira. A velha andara doente e o médico havia recomendado aquele tratamento jurássico e caro. Ele ficara só em casa e uma noite, depois do expediente, resolveu sair com os colegas de trabalho para uns drinks. Havia uma mulher da contadoria no grupo. Ele, desacostumado à bebida, acabou num motel barato com a dona.
                   Na segunda-feira procurou-a para esclarecer os fatos. Disse-lhe que tudo não passara de um equívoco, que ele não era dessas bandalheiras, era casado e fiel. Ela ainda insistiu em mais um encontro, mas diante de sua firmeza, resignou-se. Pelo menos assim pensou ele.
                   Aquilo acontecera há mais de dois anos. Ele e a tal contadora nem se falavam mais no escritório e ele julgou o assunto encerrado. Não estava. Quando a moça foi despedida do emprego no começo daquela semana, enviou a carta, que ele tinha nas mãos, para sua mulher. Contava detalhes do encontro que ele mesmo já havia esquecido, citava datas, locais, testemunhas.
                    Fora outro, teria negado, inventaria investidas da mulher, assédio. Diria que aquela carta era apenas vingança de mulher rejeitada. Mas não. Ele, neófito nessas questões do sexo clandestino, admitiu o erro.
                    Daí pra frente sua vida foi um pequeno e silencioso inferno. Os almoços de domingo se tornaram insuportáveis. O sogro, antes falante, emudeceu. A sogra, ele descobriu grossa e rancorosa. Os cunhados, cada um por seu motivo, lhe sussurravam coisas que ele tentava não compreender. Seus direitos de marido não eram mais respeitados.

                    Que lições devem ser tiradas dessa estória? Eu não sei. Só conheço a estória e sei que na vida real as coisas não saem tão bem para o mau marido, Nem todos os beijos e juras de amor nem o arrependimento nem mil buquês de flores irão lhe absolver do passado. A cada tanto, tudo será pormenorizadamente relembrado.


terça-feira, 9 de abril de 2013

Os meninos apaixonados e a cantora Joelma



                Não sou um saudosista. Não estou entre aqueles que dizem que há 30, 40 anos atrás, o futebol era melhor, a música era melhor, o mundo era melhor. Por ter vivido esses tempos, sei que isso é mentira.
                O que era melhor quando eu tinha 20 anos, é que eu tinha 20 anos, não havia AIDS e eu me apaixonava toda semana. Isso é o que realmente interessa: estar apaixonado aos 20 e poucos anos. Meu saudosismo é de mim mesmo.
                Mas havia uma coisa naqueles tempos que os dias de hoje estão sonegando aos apaixonados de 20 e poucos anos: um mínimo de inteligência.
                 Lembro-me de estar num dia daqueles anos, que para mim foram os dourados, no botequim lendo um jornal esquecido ou abandonado por algum apressado tomador de cafezinho. Era o extinto Jornal do Brasil. 
                Marilena Chauí e José Guilherme Merquior vinham travando um debate através do diário. Isso se prolongou por várias edições e a polêmica era tratada em toda parte, inclusive nos botequins. Eu era ingênuo o bastante para acreditar que todos que opinavam, entendiam algo do assunto. Tratava-se de uma acusação de plágio que teria sido praticado por Chauí. Na minha santíssima ignorância, relia o texto com afinco para ver se me punha a par dos que tinham opinião formada. Depois de algumas cachaças, voltava pro meu mundo, onde todas as lindas de Copacabana passavam, que nem cinema de seção contínua. No entanto, algo ficava do papo da filósofa, por quem eu tinha tomado partido na intrincada discussão.
                Naqueles botequins de então, também se falava do Paulo Francis, de quem eu não gostava. Só mais velho é que me dei conta que as diatribes do grande colunista, vinham expostas num texto genial. Também se discutia as críticas musicais de José Ramos Tinhorão, as asseverações de João Saldanha, a genialidade de Nelson Rodrigues, a poesia de Pessoa e de Augusto dos Anjos, as letras de Caetano e de Chico.
                Hoje, os meninos apaixonados de 20 e poucos anos têm de discutir o que dizem Marco Feliciano, Magno Malta, Rafinha Bastos, a apresentadora de TV, Rachel Sheherazade e, por incrível que pareça, o que disse a cantora Joelma, do grupo Calypso. E o pior é que essa gente é uma usina de idiotices. Estamos todos a discutir idiotices. Sim, pois há quem os defenda pensando que está defendendo a liberdade de expressão.
                Para nós, coroas, que já vestimos o pijama das ilusões perdidas, vá lá; há que dar o bom combate contra a corja, mas os meninos mereciam algo melhor para debater, para ocupar os neurônios. Como que o rapaz de hoje vai encantar a menina com um papo sobre a Joelma? A simples lembrança da cantora remete o pensamento para um hotel vagabundo, cheirando a mofo e odores de corpo. Mesmo que depois o destino do casal seja um desses pulgueiros, há que começar a conquista, o encantamento, de outra forma. Pensar na Joelma antes da cama é prenúncio de insuperável brochada.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Homens e gatos



                Uma mulher e um gato é algo bonito de se ver. A diva recostada num canapé acariciando o bichano que ronrona. Os dedos dela penetrando a pelagem densa, quase carnal. Poucas coisas são tão sensuais; as unhas vermelhas que somem e reaparecem no branco angorá. A musa parecendo perdida em sutis pensamentos que só o gato é capaz de decifrar.
                O homem, ingênuo, vendo tal cena pode ser atacado de incontinente priapismo. Ela, sábia, prática, senhora de seus movimentos, só se levanta do canapé tendo o bicho nos braços. No chão, o obsceno animal tentaria prolongar as carícias, com o infeliz costume de levantar o rabo enquanto roçasse as pernas da dona. Ela sabe que não há erotismo nem sedução que resista à visão de um cu de gato. Por isso ao levantar-se da otomana, ela o tem nos braços. A mulher sabe como domar o instinto do bicho e atiçar o dos homens. A mulher e o gato são um conluio, uma cumplicidade.
                Já homens e gatos... não orna. A figura do macho com um felino no regaço é tão grotesca quanto uma mulher de bigodes. Tão inverossímil quanto um gato de botas. No entanto, existem homens que os criam, que os tratam.
                Geralmente esses homens cultivam hortinhas orgânicas em seus apartamentos, freqüentam templos budistas e vão às manifestações políticas vestidos de branco, simbolizando a paz. Mais de um, eu vi chorando diante de uma “instalação” do Siron Franco.
                Esses homens fazem comidinhas com ingredientes facilmente encontrados em qualquer grocery, em todas as rotisseries ou nas lojas especializadas em produtos do Butão.
                Muitos deles pertencem a ONGs ou fazem parte da diretoria da Associação Pelo Tombamento da Goiabeira Branca da Praça Leopoldo Sigfried, a APTGBPLS. É nos seus apartamentos, que têm o inconfundível odor de xixi de gato misturado com Bon Air, que as reuniões da Associação são realizadas.
                Esses criadores de gatos têm sempre alguma bebida muito estrangeira guardada em armários antigos, e se temos a necessidade (só a mais premente necessidade) de visitá-los, eles nos oferecem um cálice, um dedal da tal bebida. Num pires, vem algo duro, amargo e também proveniente de terras estrangeiras, que faz o papel de tira gosto e que nos deixa na boca por uma semana, o paladar, intuo, de coco de gato.