quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

50







            No ano 2000 fui a Porto Alegre assistir um jogo do Galo contra o Internacional. Me hospedei num hotel do centro da cidade. Era o tipo de hotel que eu gosto, sem estrelas nem baratas. Havia feito a reserva desde casa e para minha sorte, ficava próximo ao local onde é realizada a feira do livro de Porto Alegre. Da janela do quarto via-se uma linda construção do outro lado da rua com arcos e uma calçada que se elevava sobre eles. A feira em si, me decepcionou. Pensei que ocorresse em local fechado, climatizado e com facilidades sanitárias. Acho que fui levado a pensar assim pela lembrança da Bienal do Livro do Rio e pela maneira que meus conhecidos gaúchos se referiam à feira. Os gaúchos são grandiloqüentes e quando falam das coisas do Rio Grande, não economizam em adjetivos. Uma descrição gaúcha do Rio Guaíba, por exemplo, nos faz crer que existe um Amazonas meridional ou um Rubicão que caudilhos e gaudérios um dia cruzaram para criar impérios.
No entanto aproveitei bem a feira e comprei alguns volumes. Uma bíblia, em cuidadosa edição das Irmãs Paulinas, que ademais de me dar alguma ilustração nas coisas sagradas, deixou evidente por suas letras diminutas, que eu estava precisando de óculos. Comprei também algo de ficção e um livro comemorativo:_Maracanã, 50 anos de glória, de Renato Sérgio, com bom texto e fotos do estádio em seus maiores momentos. No ônibus, voltando para casa, estava contente com minhas aquisições literárias e folheava o livro para não pensar na derrota para o Colorado. Estranhei que só havia uma foto da Copa de 50. Do gol de Ghiggia. Talvez fosse por problemas de direito de reprodução ou talvez o autor, diferente de mim, já não quisesse expor a ferida aberta naquele 16 de julho.
No mesmo ano de minha ida ao Rio Grande, havia adquirido os serviços de tv por assinatura e justo no dia em que cheguei de Porto Alegre, o canal Sportv começava a exibir uma série de programas para comemorar o aniversário do Maracanã. O primeiro episódio, como não podia deixar de ser, foi sobre a construção do estádio e a copa de 50. Com fotos, filmes e depoimentos, foi contada a derrota na final para os uruguaios.
As imagens nos são familiares. Ghiggia que avança pela direita, Barbosa que dá um passo para o meio tentando antecipar-se ao cruzamento, a bola passando entre o grande goleiro do Vasco e sua trave esquerda. Ao fim do jogo os jogadores brasileiros que deixam o campo em lágrimas e na arquibancada uma mulher volta-se para o lado da câmera e seu rosto é uma máscara de dor e decepção. Não sei quantas vezes vi o rosto da jovem de 1950 mas toda vez que vejo sinto vontade de abraçá-la e dizer-lhe:_ Eu também, eu também.
No entanto não há imagem nem testemunho confiável do que mais me doía em 50:_ O tapa. Diante de 200 mil pessoas, Obdúlio Varela teria dado um tapa na cara de Bigode. Ninguém viu. 200mil pessoas deviam estar lendo a Revista do Rádio e distraídas, não viram o uruguaio golpear nosso jogador. Mas a lenda persistiu e me assombrou durante anos. A simples referência àquele tapa me parecia uma ofensa pessoal e pior,  uma nação estapeara outra nação, humilhando-a. Só mais tarde fui compreender o que significava a criação daquele mito. Para nossa imprensa, que o criou e alimentou por décadas, o tapa era a comprovação de nossa inferioridade racial. Pusilânimes, nossos jogadores mestiços, mulatos, teriam aceitado o tapa dado pelo adversário racialmente superior. A mistura racial explicava a derrota. Para quem duvidasse, a “falha” de Barbosa era a pá de cal no assunto. Também no time uruguaio havia mestiços e um negro mas os mitos desprezam as evidências, mesmo as fotográficas. Durante anos o nome de Obdúlio me soou odioso. Mais odioso que a cara de fuinha de Ghiggia ou as feições de oficial nazista de filme americano de Máspoli.
Aos poucos pude extrair alguma verdade do monturo de tolices que foi publicado sobre a Copa de 50. De Nilton Santos ouvi que nosso técnico, Flávio Costa, não manjava nada. O oportunismo dos políticos da época também deu seu contributo para o fracasso e a imprensa, com seu ufanismo de ocasião, quis ganhar o jogo na véspera dando ao treinador uruguaio as manchetes que ele usou para motivar seu forte elenco. Agregue-se a isso a vaidade dos dirigentes esportivos que queriam luzir e  retiraram os jogadores da concentração no Joá levando-os para São Januário onde foram assediados durante todo o dia anterior ao jogo por jornalistas e toda espécie de sanguessugas do futebol.
Mas foi só no ano 2000 que tive a certeza de que tudo que aconteceu em 50 dentro das quatro linhas do Maracanã, foi de uma massacrante normalidade. Em seu depoimento para o programa do Sportv, Zizinho descreveu o ocorrido com a precisão que aplicava aos seus passes quando era jogador:_Os uruguaios jogaram melhor e ganharam o jogo. Pronto, era isso. A seleção brasileira fora derrotada por um adversário que jogara melhor. Não houvera tapa nem nada que maculasse a vitória uruguaia ou a honra dos derrotados. Fora um jogo de futebol, nada mais que isso.
Recentemente, assistindo o “Grandes momentos do esporte” da TV Cultura, fui novamente surpreendido por uma declaração que Zizinho fizera anos atrás. Dizia Mestre Ziza referindo-se à Copa de 50, que alguns dos jogadores de nosso time não eram tão bons como se dizia. O jornalista que o entrevistava nem sequer fez menção de perguntar por nomes. Não creio que Zizinho os citasse mas era obrigação do repórter perguntar. Na mesma entrevista dizia o craque que o grande jogador do São Paulo de seu tempo não fora ele e sim Canhoteiro. Pode-se inferir daí que Zizinho não era homem vaidoso e portanto sua declaração, a meu juízo, tem crédito. Mesmo sem ter visto jogar os homens de 50, ao longo dos anos vi muitos jogadores serem super valorizados. Bem pode ser que entre os daquela seleção também existissem os desse tipo.
No entanto nada do que vi e ouvi sobre 50 faz sombra ao maior dos dramas  daquela Copa. Refiro-me à crucificação de Barbosa. Jamais alguém sugeriu que a falha pudesse ter sido de Ghiggia, que aquela bola deveria ter sido cruzada e não arremessada ao gol ou que talvez na tentativa do cruzamento o tiro fora mal desferido indo parar no fundo das redes. De Barbosa lembro do depoimento que deu poucos anos antes de sua morte. Dizia que no Brasil a pena máxima era de trinta anos mas ele vinha pagando a sua há muito mais tempo. Disse isso com a voz débil dos humildes, com o sorriso dos que não podem impor-se pela revolta mas Barbosa estava gritando por justiça. De outra feita ouvi-o dizer referindo-se ao gol sofrido naquela final:_Eu fiz o certo e deu errado, Ghiggia fez o errado e deu certo.
À injustiça sofrida por Barbosa somou-se outra. Foi preciso passar mais de 20 anos para que outro goleiro negro, Jairo, vestisse a camisa da seleção brasileira e em copa do mundo só Dida em 2006.
Quando vencemos os uruguaios na semifinal da Copa do México, a imprensa de então, muito afinada com a ditadura, falou em vingança. Nada mais falso. 50 jamais será vingada, a menos que os uruguaios organizem um mundial e os derrotemos na final, em pleno Centenário. Ainda assim, isso nada serviria a Barbosa, a Bigode, a Zizinho. Aquela copa perdida vai continuar doendo como ferida que nunca cicatriza. A moça da arquibancada vai seguir sofrendo a derrota interminável. Eu também, eu também.











quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

É fantástico







Olhava para a televisão mas pensava na morte da bezerra, estavam passando o Redação Sportv. De repente, na tela surgem duas mulheres maravilhosas, passistas com suas sandálias de plataforma, pernas longas, bundas exuberantes, cinturas de vespa e sorrisos de miss Brasil. Entre elas, Vagner Love, o artilheiro do amor, dizia no pé. Creio que era a apresentação do novo uniforme do Flamengo. Sim, era isso. Foram poucos minutos. De volta ao estúdio, um dos convidados do programa foi quem primeiro falou:_ “Acho isso ridículo”. Falou e sorriu ridiculamente. O apresentador e o outro convidado, timidamente, muito timidamente disseram algo sobre o Flamengo ser festeiro, que era assim mesmo. Diante da pouca ênfase o convidado repetiu:_”Acho isso ridículo”.
Deixei de cogitar sobre o falecimento do bovino e passei a seguir o programa. Fiquei sabendo que o convidado se chamava Zezinho ou Huguinho ou Luizinho. Sei lá. Era um Inho desses.
 Cá entre nós, quando o sujeito já carrega cabelos grisalhos e sua barriga o antecede que nem carro abre alas em desfile de escola de samba, o diminutivo já não cabe. Exceção feita aos boleiros, o apelido infantil deve restringir-se ao lar materno. Mas nosso Zezinho, ademais do nomezinho tem um alto cargo:_É produtor do Fantástico. Mas mesmo sendo homem de televisão, não sabe comportar-se diante das câmeras e fala com a mão fechada diante da boca. Ri, antes de todos, das anedotas que conta. Olha o alem enquanto filosofa sobre o programa que produz e encara os circundantes para colher aprovações.
Sempre imaginei que para quem comanda o tal programa apresentado por Zeca Camargo, a palavra “ridículo” fosse um tabu. Pensava que só um cunhado mala, depois de tomar várias, teria a desfaçatez de pronunciar o vocábulo diante do responsável pela revista dominical. Não é assim. Huguinho usou-o duas vezes diante das câmaras e em horário matinal.  
Mas o que vira de ridículo o produtorzinho do Fantástico? Mulheres gostosas? O artilheiro passista? Samba em véspera de carnaval? Três pessoas negras como protagonistas? Acho que tudo isso. Talvez , para Zezinho, a apresentação do novo uniforme do Flamengo devesse ser feita ao som de um quarteto de cordas e com Gisele Bündchen envergando o manto sagrado.
 Luizinho, devido ao cargo de enorme relevância cultural que ocupa na Rede Globo, deve ter um ótimo salário, faz parte das castas superiores de nossa sociedade e como tal deve execrar qualquer coisa que venha das camadas inferiores. Noblesse oblige e ele não está só. Júlio Medaglia, Mônica Valdvogel, Luís Felipe Pondé, Rita Lee, Arnaldo Jabor, Renato Maurício Prado, Marcelo Mirisola e outros, lhe fazem companhia. De todos já escutei alguma vez, algo que os aproxima, que os irmana ao dono das noites de domingo. Adriano na laje, é risível para Renato. Baile funk, ato criminal para Mônica. Hip Hop faz Medaglia ter acesso de fúria. As rimas de Ferrés são imbecis para Mirisola. Vagner Love sambando com as mulatas, ridículo.
Para Huguinho e os seus, nada é mais ridículo que alguém ganhe mais dinheiro que eles e não siga os ditames que sua classe tanto estima. Não falar inglês perfeitamente, por exemplo, é sinal de inferioridade que merece o riso e a galhofa. Joel Santana não tinha seu trabalho como técnico julgado pelos comentaristas e sim o seu inglês, que ele ia aprendendo com o andar da carruagem, enquanto tentava colocar o fraco time sul africano nos eixos. Papai Joel, que é malandro, hoje fatura num comercial de tv graças ao deboche de que era vítima.
Joel e Love podem se dar ao luxo de fazer pouco caso dos comentários da turma de Luizinho. Outra coisa ocorre com os garis que foram ridicularizados por Boris Casoy ao desejarem feliz ano novo “do alto de suas vassouras” como disse o ex-integrante do CCC. Ou os freqüentadores da represa de Guarapiranga, os banhistas do piscinão de Ramos, os camelôs, as domésticas, os favelados, suburbanos em geral. Na tela da televisão ou nas redes sociais o achincalhe é a norma.
Pouco se pode fazer para controlar a turma de Zezinho, eles são os formadores de opinião. Se o comediante(?) compara jogador de futebol com macaco, é humor, quem se indigna, censor. Vagner Love com mulatas é ridículo, Kaká com a bispa Sônia, exemplo.
Depois da declaração ridícula de Luizinho no programa esportivo, ainda deu tempo de recolher mais uma amostra do tratamento dispensado às pessoas que nasceram na classe errada com a cor errada. Na última página do Diário Catarinense, que circulou poucos dias antes do carnaval, via-se uma foto de uma mulher muito bonita e sensual vestindo vermelho. Sobre a foto os dizeres:_”As rainhas e seus castelos” A frase fazia referência às rainhas de bateria das escolas de samba de Floripa. A moça está ao lado de uma parede velha, o reboco já caindo. Talvez sua casa. Duvido que ela tenha sido alertada sobre o conteúdo da matéria e a grosseria do sarcasmo. Em letras menores o autor da má intencionada piadinha continua:”Não importa de onde elas venham...” Saiu a emenda pior que o soneto e as entrelinhas rugiam de prazeroso preconceito.














domingo, 19 de fevereiro de 2012

O armazém do Waldemar







Fui conhecer supermercados em 1967, tinha quase 10 anos e isso aconteceu no Rio. Em Belo Horizonte não os havia, pelo menos não no meu bairro. Fazíamos nossas compras no armazém do Waldemar. Mais próximo de nossa casa, na Rua dos Andes, tinha uma venda na esquina da Rua Oeste onde também comprávamos, mas só o que era de mais urgência e principalmente quando era eu quem fazia os mandados.
Um dia minha mãe passava em frente à venda naquelas horas mortas da tarde, levava pela mão minha irmã pequena. O vendeiro, decerto, sem saber o que fazer de seu ócio, teve a idéia de pôr fogo em uma caneta esferográfica usada e arremessa-la porta fora. O plástico incandescente veio dar na perna de minha irmã. Desse dia em diante passamos a comprar exclusivamente no armazém do Waldemar.
 Waldemar tinha dois irmãos que com ele trabalhavam o armazém. Um deles tinha uma pequena deficiência mental e era quem conduzia a carroça das entregas. Quando meu pai deixava o dinheiro para acertarmos as contas miúdas da caderneta no fim do mês, fazíamos a compra grande e o carroceiro vinha entregá-la. Algumas vezes minha mãe permitia que eu fosse na carroça acompanhando o homem até a última entrega. Alem dos passeios, devo a esse carroceiro meu amor pelo Galo pois foi ele quem me influenciou na escolha do time. Era atleticano fanático e o time de Lourdes, seu quase que único assunto. Meu pai era carioca e pouco afeito às coisas da bola. Meu Tio Alberto era americano. Os anos 60 foram os anos do Cruzeiro, em meu entorno a única boa influência veio desse homem que conduzia a carroça do armazém do irmão.
O armazém era uma dessas belezas que só podem existir na infância. A frente toda aberta à rua com suas portas de enrolar. Nas três paredes, atrás do balcões, altíssimas estantes de onde os caixeiros faziam cair com o auxílio de uma vara comprida, as latas de gordura de coco Carioca, de fiambrada Swift, de cera Parquetina. As latas despencavam de enorme altura e vinham parar nas mãos hábeis dos vendeiros. Em uma das extremidades do escuro balcão havia grandes fôrmas de queijo parmesão e outras, menores, de queijo de Minas curado. Não longe daí, as cordas de fumo de rolo, negras e marrons. Umas tão grossas quanto o braço de um menino, outras finas,da grossura de um dedo de homem. Mais adiante as lingüiças com seu cheiro doce, toucinho defumado, .bacalhaus brilhantes de sal e pardas mantas de carne seca.
Ao pé dos balcões laterais e dividindo em dois o armazém, estavam os cochos com o feijão roxinho, o arroz de primeira e o de segunda, o milho, o fubá, a farinha de mandioca, o alpiste, o açúcar cristal, o polvilho doce e o amargo, o sal grosso e o refinado. Para nós, meninos, o bom era enfiar a mão nos cochos e sentir a aspereza do milho, o ranger do feijão, a delicadeza encerada do alpiste. A um pedido vinha o caixeiro com o saquinho de papel pardo, abria-o com um movimento de mão e o sustinha pela base para que recebesse os grãos ou os farináceos da concha cônica com alça e grande bico arredondado. Sempre se dirigia para a balança com o saquinho numa das mãos e a concha na outra para completar o peso pedido. Na maioria das vezes nem era preciso e a embalagem era fechada como se fosse embrulho de presente.
Vendia-se sabão Português e tamancos, creolina e Neocid, sabonete Cinta Azul e bolas de borracha. Sabão em pó, Omo e Rinso, anil em pedra. Comprava-se ao gosto e na medida de cada um. Meio quilo de arroz, três ovos, duzentos e cinqüenta gramas de café moído na hora, uma picada de fumo de rolo, cem gramas de sabão em barra. Tudo na caderneta.
O movimento no armazém era constante mas no sábado multiplicava-se pondo no lugar um ar de feira, repleto de saudações de boa vizinhança. Waldemar e os seus iam e vinham atendendo a todos. Eles também, vizinhos do bairro. Não me lembro de placa ou tabuleta que indicasse o nome do negócio. Não era preciso. Todos conheciam o armazém e seu dono conhecia a todos.
Alem do saquinho de papel para os produtos vendidos a granel, do jornal que envolvia os ovos e do papel acinzentado e poroso para os salgados, Waldemar não oferecia outra embalagem. Era o costume. Todos os fregueses levavam suas sacolas de lona listrada para as compras do dia-a-dia. Compras grandes o carroceiro entregava.
 Hoje, compramos em supermercados e eles não vendem meio quilo de açúcar ou arroz, tudo está ensacado segundo as comodidades da indústria e do comércio. Quando precisamos de uma pilha, levamos quatro. Se quisermos o toucinho para o feijão de hoje teremos que comprar para toda a semana. Três ovos, nem pensar. Um número sem fim de marcas, nos deixa atônitos diante das prateleiras. E o que era uma das comodidades desses estabelecimentos está prestes a desaparecer diante da neurose coletiva incentivada pelos próprios supermercados e alguns jornalistas ecológicos; são as sacolinhas plásticas.
 Em várias cidades brasileiras leis foram feitas para bani-las. A legislação paulista fala de proibição aos supermercados de fornecê-las de graça. Parece piada, proibir alguém de fazer algo que esse alguém só faz por imposição legal. Os ambientalistas exigem que levemos nossas bolsas de lona listrada embaixo do braço. Querem resolver os problemas de hoje com soluções do passado. Os tempos são outros e também é outra nossa vida. Hoje as mulheres fazem compras depois do trabalho, quando descem do ônibus ou antes de embarcar nele. Compra-se com o dinheiro na mão. A caderneta do armazém do Waldemar já não vige.  
Enquanto as grandes redes de supermercados economizam milhões não embalando o que compramos, ninguém fala da enorme quantidade de embalagens plásticas que se usa para condicionar nosso consumo. Claro, nenhum supermercado quer pagar funcionários para que nos pesem o feijão e o fubá. Não querem nos vender na medida de nossa necessidade nem querem que afundemos as mãos no cocho de alpiste. Se for para voltar ao armazém do Waldemar que façam entregar minhas compras por aquele carroceiro para que possamos falar daquele drible do Buião, daquele gol do Buglê.









sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Nós, o povo







“A arte do povo é tão desprovida de qualidade artística [...] que nunca vai alem de uma tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais, devido à sua sensibilidade embotada”
Este é um trecho do manifesto de criação do Centro Popular de Cultura, o CPC, que entre fins de1961 até o incêndio da UNE em abril de 1964, através do teatro e outras atividades culturais, propunha-se a ensinar para as massas populares o que eram as massas populares. Como deveriam pensar, agir, sentir.
Composto, em sua grande maioria, por jovens da classe média alta, ligados ao Partido Comunista Brasileiro, este grupo, iniciado por Oduvaldo Viana Filho, teve curta e “produtiva” carreira. Escreveu e encenou dezenas de peças de teatro, publicou livros e revistas, produziu um filme dirigido por Arnaldo Jabor  (Jabor e não Jabour como escrevi outro dia) Cacá Diegues, Leon Hirzman e Joaquim Pedro, promoveu festivais de cultura popular, gravou dois discos e outras coisas mais. Não conseguiu mudar o país através da arte como se propunha. Por quê? A resposta está no manifesto. Na maneira de ver e querer representar o povo. Nem se trata de uma visão distorcida, é cegueira mesmo. Não ver o que se passa à volta.
Não se pode descrer da sinceridade dessa gente que, no fundo, queria libertar o país do atraso, do domínio econômico estrangeiro mas sua concepção sobre o povo e sua arte estava a léguas da realidade.
Para os politizados de então, a arte deveria ter papel transformador ou não era arte. Arte tinha de ser arte engajada.Tal concepção me parece extremamente redutora, restritiva pois deixaria de fora toda ou quase toda a produção artística de matriz popular. Como poderiam ser agentes de transformação social os versos de Cartola ou Guilherme de Brito?  Um desfile de escola de samba ou um bumba meu boi?  Pelo menos para os subscritores do manifesto, não havia como.  No entanto são essas e outras manifestações que realmente transformam o ser humano, não pelo discurso político, mas pela beleza. Muito mais eloqüente é o samba de enredo que o panfleto que quer ser obra de arte.
Ao contrário dos sambas de Nelson Cavaquinho que José Ramos Tinhorão dizia que qualquer compositor erudito assinaria com orgulho, a produção musical do CPC é de uma pobreza franciscana. Dos dois discos gravados sob sua chancela, a música que mais representa sua visão do Brasil é “Canção do subdesenvolvido” cujos versinhos mal arrumados e de rimas forçadas são entrelaçados pelo refrão:_ “País subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido". Não trata a música de criticar os fatos que levavam o país ao subdesenvolvimento, apenas menosprezar o Brasil, amesquinhar nosso povo.
Mas nada dessa concepção era novidade entre nós. Monteiro Lobato já criara o  Jeca Tatu para com ele e sua triste figura, jogar no colo do povo, que o personagem representava, a culpa por seus fracassos empresariais e as mazelas do país. Mais tarde ao tentar redimir o personagem, caiu no paternalismo, que é a outra face do mesmo pensar.
 Americanófilo, Lobato se batia contra a criação de uma companhia estatal de petróleo. Ele, que era um dos poucos que acreditava que o país detinha reservas do mineral, queria que aqui se seguisse o modelo privado estadunidense. Numa gravação, creio que a única que temos de sua voz, ouvimos do escritor severas críticas aos estudantes nacionalistas que faziam campanha de recolhimento de fundos para financiar a propaganda pró-estatal. Torcendo os fatos, dizia Lobato que a companhia petrolífera nacional já nascia pedindo esmolas. Assim como os fundadores do CPC, Lobato queria o desenvolvimento, o fim do atraso. Acreditava no Brasil mas não no nosso povo.
Para comemorar o aniversário da publicação do “Sítio do Pica pau amarelo”, a tv pública mostrou um documentário sobre o criador de Emília. Em certo momento, o realizador fala do grande espírito empreendedor de Lobato, que tivera a idéia de distribuir livros editados por ele, por todo o país, deixando-os consignados em açougues, padarias, vendinhas. Com isso Lobato multiplicou os locais de vendas de livros como nunca havia acontecido antes. Esqueceu-se o documentarista de louvar os vendeiros.
Recentemente Monteiro Lobato foi alvo, não da aclamação que costuma acompanhar a citação de seu nome, mas sim de repúdio. O movimento negro pediu que fosse retirado das bibliotecas escolares um de seus livros no qual o autor fazia uma descrição infamante de sua personagem “Tia Anastácia”, que, por pudor, não transcrevo. Professores, pedagogos e escritores acorreram em sua defesa alegando que se tratava de censura. E Monteiro Lobato é intocável. Uma professora disse, em uma entrevista, que caberia ao professor contextualizar a obra para seus alunos, Ora, “O sítio do pica pau amarelo” é, hoje em dia, leitura para crianças de seis, sete anos, não vejo como alguém poderia contextualizar o mais atroz racismo para alguém dessa idade.
Monteiro Lobato deixou uma obra de literatura infantil das mais importantes. Vianinha ainda que descontadas as bobagens como “Bilbao via Copacabana” ou “A mais valia vai acabar seu Edgar”, marcou o teatro brasileiro com “Rasga coração” mas.ambos menosprezaram o povo, sua capacidade de criar, de transformar, de influir nos rumos da nação sem precisar de tutores.









sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Hay justicia?







Terminou o julgamento do juiz espanhol Baltasar Garzón. Por unanimidade a corte suprema de seu país o condenou a 11 anos de inabilitação. Garzón já não é mais juiz. Sua condenação se deu por crime de prevaricação. O magistrado autorizara grampos nas conversas telefônicas entre réus do caso Gürtel e seus advogados. Violara um preceito fundamental da justiça.
Mas como um experiente e competente magistrado faz algo tão disparatado?
Mesmo tendo o oceano Atlântico entre mim, o meritíssimo juiz e as altas cortes do reino de Espanha, me arrisco a cogitar que Garzón vira fortes indícios da participação dos advogados em algo ilícito. Que a prática advocatícia destes, carecia de ética ou que estavam diretamente involucrados no rumoroso caso de corrupção. Infelizmente a imprensa espanhola não faz tais cogitações e exulta com a condenação de Garzón.
Ainda que cause perplexidade que o primeiro condenado no caso Gürtel seja o juiz instrutor, os defensores da decisão do supremo tribunal espanhol, dizem que foi melhor assim, pois se o processo redundasse na condenação de algum dos imputados, cujas conversas com advogados, foram grampeadas, estes poderiam pedir a anulação de todo o processo por vício de origem na instrução.. No programa “Los desayunos de TVE” exibido hoje (sexta, 10) apenas um dos três jornalistas que compunham a mesa de debates se posicionou contra a decisão que condenou Garzón.  Em sua opinião, o recado estava dado:_ Na Espanha há veredas que não devem ser transitadas pelos que investigam. No mesmo programa, minutos depois, a porta-voz do poder judiciário espanhol, trajando um vestido cor de jerimum com bolinhas brancas, foi enfática ao afirmar que “España esta a cabeza de Europa em justicia  garantista”. Há controvérsias.
 Garzón era uma espécie de herói nacional em seu país e ficou internacionalmente conhecido por mandar prender o ex-ditador chileno Augusto Pinochet quando este se encontrava em território espanhol.  Seus concidadãos viam-no como um repartidor de justiça que ensinava, a povos menos esclarecidos, as regras do bom direito. Espanha cumpria seu papel civilizador frente às ex-colônias.
Talvez motivado pelo sucesso de sua intervenção no caso do açougueiro sul americano, e em ordem invertida do que deveriam ser suas prioridades de magistrado espanhol, Garzón começou a investigar os crimes do franquismo e creio que aí está o principal motivo de sua condenação no outro caso que investigava.
 Como já disse, milhares de quilômetros sobre o mar tenebroso me separam da pátria de Cervantes, mas penso que o franquismo ainda fratura mais a sociedade espanhola que o atual bi-partidarismo de fato. Garzón reabriu feridas que uns queriam ver esquecidas e outros sequer admitem que hajam existido. Quem nasceu no ano da morte do caudilho, hoje tem filhos e o revisionismo histórico entrou na moda nos anos 90. O juiz trafegou na contramão
Tanto é assim que Garzón também é réu no caso dos crimes franquistas e como deixou de ser juiz, não tem mais direito a foro privilegiado e poderá ser julgado em tribunal comum.  Esta decisão depende do arbítrio da corte suprema que poderia avocar a si o direito de julgá-lo.
Julgamentos como esse, desnudam uma sociedade e seu sistema de valores. Os grampos nas comunicações telefônicas entre réus e advogados que determinaram o afastamento do juiz e sua inabilitação, estão previstos e legalizados na Espanha quando se trata de terrorismo. Mas se não houve julgamento ou se o caso se encontra em sede recursal, como saber que de terrorismo se trata? Basta a acusação genérica de terrorismo para que, naquele país, se solape a mais importante das garantias jurídicas, a presunção de inocência.
A Garzón, resta recorrer à Corte Constitucional mas esta não tem poder para modificar o veredicto podendo apenas exigir novo julgamento. Caberia ainda uma apelação às cortes internacionais. O advogado do juiz promete combate.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Verão de 77







Poucos dias antes do natal eu me mudei para o Rio pela terceira vez. Na infância já morara na Cidade Maravilhosa mas as crianças estão sempre sujeitas às vontades dos adultos e depois de três anos eu estava de volta a Belo Horizonte. Mais tarde, na adolescência, passei um ano de total ociosidade no subúrbio de Todos os Santos, entre o Méier e o Engenho de Dentro. Mas havia sido uma fuga de minha ociosidade mineira e voltei pra minha terra como havia partido. De fininho. Desta vez era definitivo, pensavam meus 19 anos.
Fui morar na casa de minha tia Lourdinha, em Benfica, no conjunto dos ex-combatentes. Os blocos de apartamentos ficavam de frente para a  Avenida Suburbana cercado pelos outros três lados pela favela da Maloca. Esta favela era uma extensão da Barreira do Vasco, a extremidade que mais adentrava o subúrbio. Muitas das famílias que moravam aí não eram parentes dos pracinhas da FEB e sim vítimas de outra tragédia. Desalojados da favela de Manguinhos por um incêndio, essas pessoas, em meio ao desespero, invadiram o conjunto residencial que fora construído para abrigar nossos heróis da segunda guerra. Com o passar do tempo sua situação foi regularizada ou algo próximo a isso. Eram 10 ou 12 blocos de 4 andares. Não me lembro quantos apartamentos havia em cada andar. Não eram muitos.
Um dos blocos ainda trazia em sua parede externa, buracos de balas do exército que fora ali, capturar “elementos subversivos” durante a ditadura militar. Em outras paredes, pequenos arbustos afloravam no terceiro, quarto andar. Não havia muita conservação. O ambiente era alegre como costumam ser os lugares pobres do Rio.
Atrás dos muros do conjunto habitacional estava a favela onde eu ia à noite com meu tio jogar sinuca e tomar um samba ou uma batida de limão. De dia eu contornava pela Avenida e ia buscar um bagulho que era vendido em uma birosca que pertencia ao dono do pedaço. Trouxinhas, petecas e papéis ficavam dentro de um baleiro de vidro como se fossem balas e caramelos. O bagulho era bom, barato e farto. Em pouco tempo me dei conta que não era necessário sair do conjunto e entrar na favela, bastava pular o muro. Havia uns garotos que representavam os interesses do dono da boca, e também vendiam a erva em outros pontos da comunidade. Estavam sempre soltando pipa e dentro das latinhas em que enrolavam a linha cheia de cerol, guardavam a mercadoria..
Duas dessas puladas de muro me provocaram problemas. Uma vez caí em cima do moleque que se abrigara do sol forte junto ao muro. O cara tomou um tremendo susto mas para minha sorte naquela época nem todo mundo que lidava com o tráfico andava armado. Depois de ter sido xingado de tudo, comprei a trouxinha e pulei de volta. Na outra foi pior.
Eu tinha meu estilo de pular muros. De um salto me jogava com a barriga sobre muro, a mão direita alcançava o outro lado e as pernas iam para o ar. Por um momento eu ficava de cabeça para baixo e caía em pé. Meu 1,84 de altura e os 60 quilos de puro osso me ajudavam. O salto tinha um defeito; durante a execução eu ficava com a cara contra o muro e não via o que se passava do lado em que ia cair. Nesse dia de que falo, tão logo toquei o chão e virei para o lado certo, vi há uns 20 metros de mim, uzomi dando um bote gigantesco e encostando a rapaziada. Essa parte da favela era descampada e sem construções, o campinho de futebol.Eu era um alvo fácil. Assim como caí alcei vôo de volta. Fui atleta olímpico por uns segundos mas o coração ficou na boca. Naquele dia só fumei Continental.
Aquele dezembro foi quente ao ponto de não se encontrar cerveja. Todo dia eu ia à praia. Dois ônibus levavam a zona sul. O 472, Triagem-Leme e o 473, Triagem-Leme via Rebouças. Embora o segundo fosse mais rápido e me deixasse mais próximo de Ipanema, logo descobri que o melhor era tomar o outro que me deixava no Leme. Acontece que o 473 era o preferido dos praieiros e a rapaziada zoava demais. O motorista não suportava e parava na delegacia de São Cristóvão. Os canas mandavam descer todo mundo e revistavam até dentro da sunga. Muitos ficavam por ali mesmo.
Num desses dias depois da praia e da chuvarada, eu fui até à Maloca buscar um bagulho. Ainda não tinha aderido ao salto do muro. Depois, banho tomado e cabeça feita, fui para fora do apartamento térreo onde morava. Havia aí um banquinho de cimento que dava para o pátio comum. Era um fim de tarde que minha juventude chamou de lindo e meus muitos anos jamais contestaram. Foi nesse dia que a vi.
Na verdade antes de vê-la, a ouvi. Ela cantava um samba da Alcione. Cantava do jeito que só nossas mulheres cantam nos seus quintais de subúrbio, nos morros. Cantava, não a plenos pulmões, mas a plena garganta. Cantava enquanto lavava a roupa no quarto andar do bloco de apartamentos que dava de fundos para onde eu estava. Levantei a cabeça e a vi. Era loura, uma loura carioca com sua pele muito bronzeada, seus cabelos curtos mais claros aqui e ali pela ação do sol. Cantava e me olhava às vezes, de soslaio. Depois pendurou a roupa recém lavada no secador que pendia da minúscula área de serviço e foi pra dentro. Cantando.
Naquela mesma noite soube, através de uns amigos, o seu nome. Não fui tão discreto como supunha poder ser e junto com o nome da garota veio o aviso que ela tinha um irmão bravo. Poucos dias depois, no ano novo, ficamos juntos. Aquelas horas que inauguravam 1977 foram como um presente de boas vindas à cidade, ao ano, à vida que me sorria. Não chegamos a ver o sol raiar e nos dias seguintes ela me ignorou rotundamente.
Hoje já não lembro seu nome. Minhas mãos esqueceram seus seios e seu rosto vai se desvanecendo na memória.  Mas ainda a ouço cantar.






segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Pra quem?







Outro dia, trocando os canais da televisão em busca de um futebolzim, parei uns minutos na TV Câmara. Estavam passando uma audiência pública ou algo do gênero. Falava um senhor e no pé da tela estava escrito seu nome e qualificação. Era economista e professor universitário da matéria. Tratava da questão dos créditos. Comparava o crédito imobiliário com o crédito concedido para compra de bens duráveis. Dizia que quando alguém compra uma geladeira e não pode paga-la, esse crédito está perdido, pois uma geladeira que foi comprada por R$1.000, depois de usada, não valeria mais que R$ 150.
Estava na cara que o economista nunca comprara uma geladeira usada. Mas inventou um número mágico e com ele defendia sua tese. Algo bastante comum entre os economistas. Deixei pra lá e continuei procurando alguém que chutasse uma bola.
Mas a geladeira de R$150, me fez lembrar que estou sem máquina de lavar já faz muito tempo e preciso comprar uma usada. Não vou achar por menos de R$400, e bem velhinha. As duas que tive foram compradas usadas e paguei mais que isso na última. Talvez no brechó do economista...
E é aí que está o problema; o economista não tem um brechó. Ele e seus pares vivem ocupados resolvendo nossas vidas. Planos e medidas econômicas lhes tomam todo o tempo.Uns executam, outros criticam. Uns dizem que não devo fazer crédito para comprar a lavadora, outros vão falar que eu acho uma usada por R$150. Entonces dame dos, diria minha mulher.
Assim como o economista que não quer que eu compre a máquina de lavar, não manja nada de aparelhos usados, também os que cuidam dos empregos jamais procuraram um. Ou você imagina o Eduardo Matarazzo Suplicy ou o Jorginho Bornhausen deixando o currículo em alguma empresa? Já ouviu alguém comentar que encontrou o secretário de transportes no ramal de Deodoro? Ou que o ministro da saúde operou a vesícula no S.U.S da Penha?  Não. Quem cuida de nossas vidas não tem nem idéia de como vivemos.
Só tem um serviço público que é utilizado por nossos dirigentes políticos e nossas elites. É a universidade pública e gratuita.
Este feudo que a burguesia gentilmente divide com a classe média do país, está agora ameaçado pela política de cotas. Vozes indignadas com tal afronta se levantam e falam de racismo, de privilégios. O jornalista Japiassu comentou o quão difícil é ser branco no Brasil nos dias de hoje. O professor Magnoli sequer admite que existam negros. Outros falaram que os alunos cotistas saídos da escola pública não conseguiriam acompanhar o ritmo dos cursos universitários. Quando os primeiros números relativos aos cotistas saíram, caiu por terra essa argumentação.
Nenhum dos dados me surpreendeu. Já os esperava. A média de aprovação de cotistas e não cotistas é a mesma. A freqüência às aulas entre os cotistas é maior assim como é muito menor o abandono do curso. Claro, os alunos cotistas não têm a segunda opção na empresa do papai. Tampouco abandonam o curso para fazer uma viagem à Índia em busca de auto conhecimento. As moças do curso de pedagogia ou psicologia pretendem ser pedagogas ou psicólogas. Não estão se adornando de conhecimento e diploma enquanto esperam um marido bem sucedido.  
Se a política de cotas põe um mínimo de justiça em nosso sistema de ensino, não toca em outra aberração que é a gratuidade para quem nem de longe precisa dela. No último vestibular da Fuvest, o maior do país, 68% dos inscritos vinham da escola particular. Entre os aprovados este número cresce muito. Não fossem as cotas e teríamos algo próximo aos 100% devido ao sucateamento da escola pública.
O governo federal, através de sua instruída burocracia, criou o Pró-Uni para financiar os estudos de quem não passou pelo funil de nossas universidades públicas. A seleção desses agraciados passa pelo Enem, que não deixa de ser um vestibular, um concurso para o qual estão melhor preparados os alunos vindos da escola particular. Não sei que peso tem na escolha, os dados sócio-econômicos dos que se inscrevem para obter o financiamento. Mas os que conseguem a dádiva federal, ao final do curso terão que pagar seus estudos, podendo fazê-lo, prestando serviço nas escolas públicas, graça suprema
Quanto àqueles que concluem seus estudos acadêmicos gratuitamente, nas universidades públicas, nada devem, embora sua formação seja mais custosa para a sociedade. Se fosse menos dispendiosa não faria sentido o financiamento federal para os ingressados em universidades particulares.
Dados do último vestibular da Fuvest, apontam que as famílias de 15% dos aprovados, possuem 3 ou mais carros. Mas isso significaria pouco caso os seus filhos tivessem alguma obrigação para com a sociedade depois de graduados. Isso não se dá. Diploma nas mãos, podem partir para o mercado, mesmo que este seja fora do país. Países como a Alemanha já concluíram que é mais barato e prático suprir o déficit de profissionais especializados com mão de obra oriunda dos países em desenvolvimento. A evasão de talentos não é coisa dos dias de hoje. Apenas se agravou.
O tema da gratuidade nas universidades públicas é tabu. Nossos representantes no congresso pertencem, em sua grande maioria, às classes mais abastadas e usufruíram do “direito” de freqüentar o ensino superior sem pagar nada por isso. Querem o mesmo para seus filhos e os de sua classe. Mesmos nos partidos comprometidos com as causas populares, só se toca no assunto quando o ensino gratuito, de uma maneira geral, está em discussão. Esses partidos não querem mexer com os universitários, que mesmo sendo filhos das “boas famílias”, formam base importante da esquerda mais conseqüente.
Não se trata aqui de defender a privatização do ensino superior, pelo contrário. O que se deve questionar, na minha humilíssima opinião, é:_Universidade pública e gratuita para quem? A reposta me parece óbvia. Universidade pública e gratuita para quem sai da escola pública e gratuita.










quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Neymar







Faz mais de 20 anos que não vou ao cinema. O último filme que assisti foi uma fita da Cicciolina. De minha casa até o cinema mais próximo são 90 quilômetros. Quando ia, nunca chegava atrasado ou em cima da hora. Gostava de ver as propagandas, o noticiário e principalmente o Canal 100, a parte esportiva. As imagens de futebol mostradas ali, só foram igualadas muito recentemente pelas televisões. Eram espetaculares. Mas havia algo que me incomodava.
Quando mostravam a torcida, as lentes focalizavam a geral do Maracanã , os tipos “pitorescos”. Gente pobre que provocava risos na platéia. Não que fizessem nada de especial ou fora dos padrões de torcedor. Apenas eram pobres, lhes faltavam dentes, alguns traziam a camisa do clube de sua paixão, já rasgada, desbotada. E a platéia de classe média via nisso, não sei que graça. Eu sempre pensava que um daqueles caras poderia estar ali, na sala de projeção próximo a mim. E senão ele, o filho, a mãe, a mulher que o amasse. As lentes e a platéia não pensavam assim. Para eles não eram pessoas com famílias, sentimentos, amores, apenas coisas que provocavam risos. Hoje tudo mudou. Pra pior.
Outro dia no facebook alguém postou umas fotos que eram encimadas pelos dizeres:_ “Não dê uma câmara digital a um pobre”. Embaixo, as fotos. Numa delas umas crianças numa piscina de plástico traziam aquele sorriso que só pode vir do imenso desfrute, da alegria de estar passando um bom momento com os irmãos ou primos ou vizinhos. O entorno é pobre e as crianças são negras. Numa outra foto está uma mulher, também negra. Tem os seios nus resguardados pelas mãos e é muito gostosa. Vê-se ao fundo uma habitação pobre. É difícil imaginar que quem fez a estúpida anedota não goste de mulheres ou crianças. Mas fica claro que não gosta de pobres. Mesmo que sejam crianças, ainda que seja uma mulher, sob todos os aspectos, desejável. Na postagem seguinte, o mesmo idiota se solidariza com os moradores expulsos do Pinheirinho.
Muitas outras postagens têm o mesmo sentido e a palavra pobre vem sempre seguida de uma afirmação torpe, o preconceito explícito querendo ser humor. Condições sub-humanas de existência não causam revolta, viram piada. Pessoas que, apesar de tudo, conseguem ver a beleza e alegria na vida, causam ainda maior desprezo. Mas há coisas que provocam mais desprazer em quem vive acomodado nas classes médias da população.É quando o pobre fica rico. Ver um menino pobre e talentoso ganhar em um mês o que alguns “doutores” levam anos para ganhar, provoca indignação e os jogadores de futebol são o alvo preferido desses “indignados”. E isso não é de hoje.
Numa de suas transferências de clube, Leônidas da Silva, o Diamante Negro, tinha explicitado em seu contrato que receberia de “luvas” alguns ternos. Até o tecido da confecção estava estipulado. Leônidas era famoso pelo gosto de boas roupas e por comer mulheres brancas. Jamais foi perdoado.
Didi, o maior jogador de seu tempo até o surgimento de Pelé, tinha seu nome escrito nos jornais com os ii substituídos por cifrões. Isto porque ganhava mais que o presidente da república. Se no domingo o jogo não fosse favorável ao craque alvinegro, na segunda-feira o assunto do salário vinha à tona. Mas o “Príncipe Etíope” não dava muitas chances para que isso acontecesse.
Poucos dias antes da morte de Dener, houve uma convocação para a seleção brasileira. O craque da Lusa ficara de fora. Dener era um pouco demais para a cabeça de Parreira. Chateado com a ausência do jogador, eu escutava o noticiário esportivo de uma rádio paulista quando um de seus comentaristas de sobrenome italiano, justificou a decisão do técnico da seleção dizendo que nada se podia esperar de um cara que compra um carro importado com o primeiro dinheiro que ganha. Desculpe a grosseria, mas a pergunta sai da gente:_ O que o cu tem a ver com as calças? Sou capaz de apostar que o ítalo-comentarista vivia encalacrado pagando a cota da viajem à Europa ou prestação do apartamento pretensioso e acima de seu orçamento.
Uma das vítimas preferenciais do preconceito foi Romário. Foi e é. Nos tempos de jogador ele era visto como um indisciplinado porque não gostava de treinar. Poucos gostam. Romário era atacado por dizê-lo. Durante toda a eliminatória que nos levaria ao mundial dos Estados Unidos, ele ficou de fora, só sendo convocado para a última partida decisiva contra os uruguaios. Deixou dois gols memoráveis. Na copa fez o diabo. Antes de embarcar para a conquista de nosso quarto título, fez uma brincadeira dizendo que queria viajar na janelinha do avião. Bastou. Mal humorados e chatos em geral acharam na brincadeira motivos para toda espécie de críticas. O prestigiado comentarista catarinense Roberto Alves disse que em seu time ele não jogaria. Outro jornalista, Mino Carta, ao se referir ao jogador sublinhou sua “arrogância”. Lembro-me bem que ao pronunciar a palavra tinha um esgar de nojo, desprezo.
Hoje, deputado federal finalista do Prêmio Congresso em Foco por sua atuação parlamentar, o Baixinho continua despertando a bronca dos “bem nascidos” e dos que pretendem sê-lo. Claro que o meio usado para insultar o craque é o facebook. Uma charge postada aí, mostra três personagens da política nacional. Malluf, Tiririca e Romário. Todos levam cartazes nas mãos. O de Malluf fala de impunidade, o de Tiririca evoca seu analfabetismo e o de Romário faz menção a oportunismo.
Talvez seja mais fácil esconder o amor ou o ódio que a inveja. João Saldanha, intransigente defensor do jogador de futebol, algumas vezes falou em suas crônicas desse sentimento que seus “coleguinhas” cultivavam com relação aos boleiros. Hoje, que a internet permite que qualquer um exponha seu pensamento, o preconceito e a inveja podem se alastrar com mais facilidade encontrando vazão e eco. O anonimato ajuda. Quando é necessário pôr a cara, há o recurso do humor fajuto ou do moralismo indignado.
A bola da vez é Neymar. Só esta semana vi duas postagens nas redes sociais sobre o jogador. Numa delas aparece um quadro comparativo com fotos de um policial, um professor e do craque. O tema é o salário que cada um recebe e sua função social. Do primeiro se diz que ganha R$ !600 para garantir nossa segurança, do segundo que recebe, para ensinar nossos filhos, R$ 800 e quanto a Neymar, R$ 1.500.000 para chutar uma bola. Só esquecem de dizer que Neymar não recebe dinheiro público. Quem paga seu salário, o faz não por amor ao Santos ou ao futebol e sim para lucrar com o talento do jogador. Quando Michael Jordan era o atleta mais bem pago do mundo entre os que praticavam esportes coletivos, o jogador pediu um reajuste de contrato pois seus contadores e advogados concluíram que ele não ficava com mais de 5% das receitas geradas em torno de seu nome.
No facebook uma outra postagem chama a atenção. Nesta, a foto do jogador aparece ao lado de uma lhama com a frase:_ “Separados por um zoológico”. Creio que foi tirado do blog humorístico kibeloco. E aí não é só a inveja pelos altos rendimentos de Neymar, é bem pior. Nesse quadro do kibeloco, geralmente os “separados por” são pessoas bem diferentes que tem alguma semelhança física. Também já vi nesse quadro do blog, personagens de desenho animado ou estória em quadrinhos ao lado de pessoas reais, mas a comparação com um animal, é a primeira que vejo. Coisificando, animalizando, degrada-se, humilha-se.
Mas porque se quer humilhar Neymar? Simplesmente porque de pobre passou a rico. Porque não é branquinho e não tem bochechas rosadas. Porque seu cabelo não é igual ao cabelo dos bonequinhos do play mobil e dos jornalistas esportivos de televisão. Porque, sem ser bonito, faz sucesso entre as adolescentes e pega geral. E o que faz o garoto para merecer tanta animosidade? Faz gols, golaços e ganha muita, muita grana. E mais; irá morar na Espanha ou na Inglaterra na hora que quiser. O sonho de consumo da classe média está a seu alcance. Há que indignar-se.