segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sinceros votos


                Um sorvete de manga, na casquinha.
                Camarão refogado, com manjericão e salsinha.
                Sorriso de neto, abraço de filho.
                Um filme do Cláudio Assis, um samba do Zeca Pagodinho.
                A terceira sinfonia de Mahler, o gol do Ronaldinho.
                Um beijo dessa mulher, seu amor, sua calcinha.
                A proibida maconha, a cachaça às escondidas.
                O gosto de falar mal dos outros, uma geladinha.
                Uma camisa nova, uma saia. Pro cabelo, uma fita.
                A paradinha da bateria, na avenida.
                Um samba antigo, batido na caixinha.
                Um rap, repúdio do mano da periferia.
                Paz pra quem vive em Gaza, no Alemão, na Rocinha.
                Férias em Natal, onde mora a Lia.
                Um fim de tarde, uma noite, na melhor companhia.
                Uma saudade gostosa, de quem sorveu a vida.

                 Espero que você possa desfrutar de tudo isso nesse ano que se inicia.
                 São os sinceros votos do Manuel e os meus também.












sábado, 22 de dezembro de 2012

Tiro no pé


                Quem acompanhou a eleição presidencial de 1989, deve se lembrar, pelo menos, de dois fatos: a edição feita pela Globo do último debate entre Lula e Collor, que favorecia o então candidato dos Marinho e a aparição, no programa eleitoral de Collor, da ex-mulher de Lula.
                Hoje tenho minhas dúvidas quanto ao impacto da edição do debate nos números finais daquela eleição. Havia muita expectativa em torno do pleito, afinal se elegeria diretamente um presidente depois de 27 anos. A forte polarização não fazia crer em um número muito elevado de indecisos naquela altura do campeonato.  Que alguém mudasse de opinião, motivado apenas pelas imagens editadas, me parece improvável.
                O outro fato pode ter sido mais relevante para a vitória de Collor. Numa sociedade conservadora como a nossa, a presença da ex-companheira de Lula afirmando que este queria forçá-la a fazer aborto quando engravidara de Luriam, provocou muita comoção. Até hoje o  aborto é tabu entre os religiosos do país. Além do mais, ficou no imaginário popular a figura de um homem forçando uma mulher a fazer algo contra sua vontade. O forte contra o fraco.
                Depois de prestar esse serviço a Collor, a pobre mulher foi para a Europa e nunca mais se ouviu falar dela.
                A utilização de um fato pretérito da vida pessoal do candidato adversário como recurso para desqualificá-lo, inaugurou, naquela eleição, uma maneira de fazer campanha política com a qual já nos acostumamos depois de todos esses anos de esculacho e esculhambação. Mas sempre há do que espantar-se.
                No facebook apareceu uma tirinha grosseira, que tentava ser humorística, citando que Fernando Henrique Cardoso tem 2 filhos fora do casamento. A notícia é velha. De um dos filhos já se falava desde 2009, do outro desde 2011.
                Assim como Collor em 89, alguns petistas de hoje tentam atacar um adversário político levantando questões de sua vida privada. O que se deve cobrar de FHC e de seu inoperante governo, são as privatizações escandalosas, a estagnação econômica do país durante os 8 anos de sua estada no poder. Dele, deve ser questionado o modo como conseguiu sua reeleição, as alianças espúrias que fez, sua adesão às teses neoliberais.  Sua vida íntima não deveria interessar a ninguém ou, pelo menos, que só se falasse disso nas colunas de fofocas e futilidades. Não é tema político. Ademais, Fernando Henrique Cardoso nunca posou de moralista.
                Mas por que vêm os petistas requentar o assunto dos filhos naturais do ex-presidente nas redes sociais? Qual o motivo do vezo udenista?
                Bem, em primeiro lugar, porque os petistas vêem FHC como o principal adversário de Lula, já que nem Serra, o vampiro da paulicéia, nem Alkimim, o picolé de chuchu, foram páreo para o ex-metalúrgico. Fernando Henrique foi quem derrotou Lula em duas eleições e é também quem mais ataca Lula sempre que a oportunidade aparece.
                Em segundo lugar, porque Lula vem sendo alvo de denúncias feitas por Marcus Valério, que tenta involucrar o ex-presidente no escândalo do mensalão. O publicitário dos milhões entregou ao Procurador Geral da República documentos que provariam a participação de Lula no caso. Entre esses documentos, (poucos, segundo as palavras de Gurgel) estariam dois recibos de depósitos bancários. Os petistas tentam, através do factóide, desviar as atenções. O estratagema é pueril e inepto. Coisa de aloprados.
               Não creio que Lula esteja envolvido em corrupção. Pelo menos não o vejo como um recebedor de propinas. Tampouco creio no seu desconhecimento dos fatos relacionados com o mensalão. Crer nisso seria fazer pouco caso da inteligência, da argúcia de Lula. Mas para quem acha que José Dirceu é inocente, Lula deve parecer um santo.
                Outra postagem que tenta ganhar vida nas redes sociais, e também está relacionada às denúncias de Marcus Valério tem os seguintes dizeres: “Mexeu com Lula, mexeu comigo”. Parece-me outra idéia aloprada. O que querem esses amigos de Lula compartindo visão tão acrítica do ex-presidente?
                Durante seu governo, Lula acertou mais que errou. A estabilidade econômica e os programas sociais retiraram da pobreza extrema milhões de brasileiros. A política externa, praticada durante seu mandato, foi conseqüente e altiva. E também em outras áreas houve avanços importantes. Isso não quer dizer que em outros temas seu governo não tenha fracassado rotundamente.
                Fica no passivo de Lula, a acomodação de companheiros em infinitos cargos comissionados, desprestigiando os funcionários de carreira, a falta de uma ação mais decisiva do governo federal para amenizar o drama da saúde pública, uma política de educação que merecesse esse nome e maiores passos na questão da reforma agrária. Principalmente nessas  áreas, faltou ação e sobrou discurso.  
                Quanto às denúncias, cabe respondê-las. Não basta chamar Marcus Valério de vagabundo, como fez Lula recentemente. Foi esse vagabundo que, com seu esquema, ajudou o PT e o governo a desviar verbas públicas para os bolsos de deputados corruptos e cofres de partidos de aluguel. Graças ao esquema de Valério, o governo conseguiu aprovar no Congresso, projetos impopulares, como a reforma da previdência.
                As denúncias de Valério podem ser apenas uma tentativa desesperada de conseguir uma redução de sua pena de mais de 40 anos. Ou a frustração de quem se viu abandonado, sem o respaldo daqueles que, ainda tendo fatias de poder, poderiam ajudá-lo.
                O fato é que ao tentar desqualificar Valério, chamando-o de vagabundo e delinqüente, os petistas assumem toda a maracutaia que insistiam em negar, pois se Valério delinqüiu, não o fez sozinho nem por conta própria. Tiro no pé.




quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Quem pode errar por último


                Para definir a democracia, o que não falta é frase feita. De Fernando Henrique Cardoso já ouvi que “a democracia é como o ar, só quando falta é que nos damos conta de sua necessidade”. Não sei se a frase é de sua lavra ou se ele a recolheu no Almanaque Capivarol.
                Jô Soares já disse, mais de uma vez, que “a pior democracia é melhor que a melhor das ditaduras”. No meu humilíssimo entender nada que seja “o pior” de algo pode ser bom. Pelo menos, nem FHC nem o Gordo ousaram dizer que a democracia é uma plantinha que precisa ser sempre regada. Mas há quem diga e emende com a história do colibri e da floresta em chamas.
                Anônimos e famosos, idiotas e pensadores, muitos foram os que já disseram algo sobre a democracia. Falar é fácil, aceitar a decisão das maiorias ou respeitar as posições das minorias, é outra coisa. Quando contrariados em suas pretensões, os detentores do poder, seja ele político ou econômico, atacam a democracia dizendo defendê-la. O discurso dos golpistas de 64 era esse. Esse é o discurso que, hoje, deputados mensaleiros e seus defensores fazem desde a tribuna da Câmara. Acha a comparação exagerada? Pode ser que seja, pode ser.
                 Nem só de votos nas urnas vive a democracia. Nessa forma de governo há de haver a separação de poderes, sua independência e harmonia. E os deveres e poderes de cada um devem ser claramente estabelecidos pela constituição, cabendo ao poder judiciário zelar por seu cumprimento. Como disse Rui Barbosa, a alguém deve caber o direito de errar por último. No caso brasileiro esse direito cabe ao poder judiciário em sua última instância, o Supremo Tribunal Federal. Ainda que erre, cabe ao Supremo a última palavra. Infelizmente, não é assim que vêem alguns integrantes do Poder Legislativo. Para esses senhores parlamentares, democracia é tudo aquilo que favorece seus interesses, suas teses, seu partido. Caso contrário, é ditadura, intromissão indevida, arbítrio.
                Após ser colhido, na última segunda-feira, o voto do Ministro Celso de Melo, o plenário da Suprema Corte decidiu cassar o mandato dos deputados que o tribunal condenou no processo do mensalão. A corte se dividiu entre duas teses, ambas amparadas na Constituição. Acontece que nossa Carta Magna possui artigos conflitantes sobre a questão enfrentada. Venceu por 5 votos a 4, a tese que dá ao Supremo o direito da cassação.
                Por aí deveria ter ficado a discussão não fosse o pronunciamento feito na véspera pelo destemperado Presidente da Câmara, Marco Maia. O deputado, num ato de bravata pueril, ameaçou não acatar o parecer do Supremo. Depois da decisão foram outros deputados que subiram à tribuna para atacar o STF. O Deputado Sibá Machado, mesmo atropelando o vernáculo, disse que a cassação fora sumária. Ora, não só o placar apertado da votação como o próprio embasamento jurídico da decisão, dizem outra coisa.
                Uma deputada da base aliada foi além e, mais uma vez, tentou desqualificar todo o processo. Disse Sua Excelência que não havia provas para as condenações. Claro que ela se referia a José Dirceu. O que queria a deputada? Um recibo assinado? Uma confissão expressa? Não é preciso ser jurista para saber que as provas de um processo são de variada ordem: materiais, testemunhais, documentais, periciais, etc. Para a formação de sua convicção, o julgador pode valer-se de simples indícios. No caso da Ação Penal 470, houve mais de uma confissão de recebimento de dinheiro ilegal. Vários condenados citaram José Dirceu como o homem da última palavra, o que batia o martelo na distribuição de propinas.
                A deputada do PC do B também asseverou que o Supremo havia descumprido a Constituição ao cassar o mandato dos deputados condenados pelos mais diversos crimes na Ação Penal 470 e citou o artigo de nossa lei maior que embasou os votos vencidos no julgamento. Esqueceu-se, Sua Excelência, de citar a tese vencedora. Custa-me crer que a deputada desconheça o que motivou o veredicto da corte. Creio que ela apenas nos vê como idiotas patológicos incapazes de formar uma convicção a partir do confronto de duas visões distintas.
                Mas na verdade, isso já deixou de ter importância. O veredicto do tribunal foi dado, cabe acatá-lo ou não estaremos vivendo uma democracia. O que vale para o cidadão comum deve valer também para Suas Excelências, os deputados. Decisão judicial não se discute, cumpre-se.


domingo, 16 de dezembro de 2012

Semana que vem, a crise


                Pelo que tudo indica, o Supremo deve cassar o mandato dos deputados condenados no processo do mensalão. A Corte está dividida e com o “placar” de 4 X 4, foi encerrada a sessão plenária da última quarta-feira. O voto que falta ser dado é o do Ministro Celso de Melo que já se manifestou, informalmente, pela cassação.
                O Presidente Joaquim Barbosa deve estar arrependido por não ter colhido o voto de Celso de Melo naquela sessão. Na quinta-feira o Ministro adoeceu e foi hospitalizado. Ficou o suspense.
                _Que suspense? Você perguntará. Se Celso de Melo já deu claros sinais de pender pela tese da cassação? 
                Acontece que caso o STF venha a cassar os mandatos dos deputados mensaleiros, será aberta uma crise institucional. Marco Maia, Presidente da Câmara, disse, claramente, que só a casa pode cassar mandato de deputado. O ponderado decano poderia, em nome da paz social e da harmonia entre os poderes, rever sua posição. Embora avente a possibilidade, eu não creio nisso. Penso que o Ministro Celso de Melo votará pela cassação dos mensaleiros. E aí, teremos a crise.
                O descontentamento dos parlamentares com o STF, não está circunscrito apenas a essa questão. Há tempos que a Suprema Corte vem fazendo o que o parlamento, por inépcia ou omissão, vem deixando de fazer: legislar. Foi o Supremo que legislou sobre a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, sobre a união estável de pessoas do mesmo sexo e sobre o direito de manifestação dos defensores da legalização da maconha.
                 Nesse caso específico, a pergunta é: cabe ou não ao Supremo cassar mandatos de parlamentares condenados pela Corte por crimes relativos à função?
                Não posso, por óbvia falta de conhecimento, entrar no mérito da questão. Até mesmo experimentados juristas divergem sobre o tema. A Carta Magna tem lacunas e contradições pelo que pude perceber nas discussões travadas na Suprema Corte e nos votos proferidos.
               Cabe aqui apenas uma opinião, ou melhor, um questionamento de cidadão: como pode um parlamentar condenado por corrupção, formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro e outros delitos, preservar seu mandato? Não se trata de crime passional ou de honra que poderiam ser vistos como atinentes apenas ao cidadão que detém mandato. Não. Os crimes praticados por esses parlamentares têm direta relação com seu cargo público. Foi essa função pública que possibilitou a prática dos crimes.
                Outra possível solução para a crise que se avizinha, seria a Câmara, desconhecendo o parecer do Supremo, abrir processo por falta de decoro parlamentar e no plenário, sob o manto do voto secreto, cassar o mandato dos deputados da quadrilha. Possibilidade remota, remotíssima.
                O que me parece certo é que veremos na próxima semana, lideranças e deputados do baixo clero, com seus cabelos tingidos em todos os tons do acaju, proferirem inflamados e vazios discursos sobre a soberania do parlamento, a dignidade e a inviolabilidade do mandato. Assuntos que desconhecem profundamente. Sofreremos todos pela verborragia tola e inócua. Sofrerá o país pela falta de trabalho parlamentar. Sofrerá o bom senso. Sofrerá a gramática.




sábado, 15 de dezembro de 2012

O poder do embuste

                Creio que foi no ano passado, ou no anterior. Não sei bem. Pra não ficar na dúvida, apelemos para a imprecisão. Digamos que foi no passado recente. O fato é que um deputado, (ou seria um senador?) propunha uma mudança nos códices legais, para descriminalizar as práticas de sortilégios.
                Argumentava o parlamentar que não fazia mais sentido fingir que se perseguia algo que era anunciado em cada esquina, em todos os jornais, na internet. Tive de concordar com Sua Excelência. Os panfletos, que prometem trazer o amor de volta em 30 dias, são distribuídos por todas as cidades. O jogo de búzios, o tarô, a leitura de mãos, são praticados de portas abertas e fazem parte do cotidiano de nossa população tão propensa ao misticismo.
                Minha concordância com o parlamentar vinha também da convicção que o estado não deve se intrometer na vida íntima dos cidadãos. Uma crença é algo pessoal, íntimo. Não cabe aí, segundo creio, a tutela estatal. Junte-se a isso, um certo cinismo que venho cultivando com relação à humanidade tão bem definido no aforismo carioca:_ “Pra que otário quer dinheiro?” Quer pagar por uma mandinga que traga de volta o marido infiel? Que pague. Acha que um “trabalho forte” lhe fará passar no concurso do Banco do Brasil? Então dê dinheiro ao bruxo que ele resolve. Não é problema do estado. O contribuinte não deve estar pagando para que se persiga o vendedor de ilusões.
                Mas, enquanto falava Sua Excelência, eu ia pelas ramas e pensava em outras práticas,  perseguidas pelo aparato repressivo do estado, que também fazem parte do cotidiano de milhões de brasileiros. Como viajei na maionese, não vi o óbvio.
                Já dizia Nelson Rodrigues, que só quem vê o óbvio são os santos e os sábios. Pobre de mim, pobre de mim.
               No entanto o óbvio estava lá e ululava.  Claro que o parlamentar não estava tão interessado assim nos bruxos, adivinhos e afins. Estes charlatães jamais se manifestaram contra a perseguição que há muito não existe. Videntes não lutam pela regulamentação da profissão. Nenhum jogador de búzios quer descontar para o INSS. Não há sindicato das cartomantes nem associação de leitores de tarô.
               A proposição do representante do povo visava outro ramo do charlatanismo e do abuso da fé pública: os proprietários de igrejas neo-pentecostais. Sim, pois o que enseja a proibição dos atos de sortilégios são o abuso da fé pública e o charlatanismo. Uma vez que o código legal não oponha restrições à sua prática, não há como enquadrar nenhum dos bispos e pastores que apregoam milagres e se dizem possuidores de conexões com o divino. Afinal, que diferença há entre uma pessoa que, lendo ensebadas cartas de tarô, diz conhecer o futuro e os pastores que prometem interseção junto às cortes celestiais para que o crente consiga comprar o carro novo? Pelo menos quanto à má fé e o intuito de tirar proveito da ingenuidade alheia, não há nada que os separe.
               A grande distinção entre um e outro está no poder econômico. Enquanto o vidente e o feiticeiro aliciam seus fregueses um a um, os donos das igrejas neo-pentecostais congregam milhões através de seus gigantescos e inúmeros templos e horários comprados nas TVs. Enquanto aqueles cuidam de suas vidas, estes tentam, com o poder político que suas fortunas conferem, influenciar toda a sociedade, levá-la ao atraso. No caso desses apóstolos do obscurantismo, mestres do embuste, amealhadores de fortunas, não há lugar para o cinismo, para a vista grossa, para o “deixa pra lá”.
               Na verdade, não sei o que foi feito do projeto do parlamentar. Sei, sim, que o Ministério Público enfrenta as maiores dificuldades para processar os milagreiros cujo poder político cresce paralelamente ao seu poder econômico. Eleição é dinheiro e isso, pastores e bispos têm de sobra. Não contabilizado, bem ao gosto dos políticos.
               Há inúmeros projetos transitando nas duas casas do Congresso, que direta ou indiretamente, beneficiam as igrejas arrecadadoras.  Uns propõem mais isenções, outros  subsídios para as contas de energia. Carros de luxo, mansões, helicópteros e aviões usados pelos proprietários das seitas e seus acólitos, são registrados como bens das igrejas, livres de impostos e explicações.
               Na última eleição pudemos assistir o beija mão de bispos e apóstolos por candidatos e apoiadores. Até Alkimim, homem da Opus Dei, foi ao templo de Waldemiro pedir benção para a candidatura de Serra.
               Numa mostra de como esses barões da fé estão acima da lei que rege a vida dos brasileiros, o candidato à prefeitura de São Paulo, Celso Russomano, prometia durante a campanha eleitoral, não fechar templos que estivessem em situação irregular. Isso depois do teto do templo da Bispa Sônia e do Apóstolo Estevão ter desabado em cima dos fieis, matando 9 pessoas e ferindo 106.









quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A última de Waldemiro


                Acabo de escrever o título desta postagem e já me arrependo. Afinal como posso ter  certeza que essa é a última grande sacada de Waldemiro?  Mais de 24 horas já passaram desde que tomei conhecimento do fato. Para Waldemiro isso é uma eternidade. Sua cabeça é um vulcão de idéias.
                O dono da Igreja Mundial já vendeu toda espécie de quinquilharia sagrada: meias ungidas, toalhinhas mágicas, colher de pedreiro consagrada, fronhas abençoadas, o escambau.  Mas, previdente como um patriarca hebreu, Waldemiro sabe que não pode valer-se apenas do comércio, atividade dada aos humores do mercado e da moda. Além do mais, há a pirataria, o contrabando, a falsificação e o descuido dos fiéis, que podem acabar comprando um par de meias do Paraguai, ou uma toalhinha chinesa no camelô.        
                Por estes motivos Waldomiro não abandona o antigo, mas seguro, carnezinho.  Há de $50 e de $100. Estes, estão sempre com o fiel para ser pago em qualquer agência bancária ou mesmo no débito automático.
                Claro que não estamos falando do dízimo que  é sagrado, está nas escrituras e não há como escapar da vigilância de Deus nem dos anjos que trabalham para Waldemiro. Mas aí ele inovou. Criou o dízimo em dobro.
               O raciocínio é o seguinte:_ Os 10% que os fiéis entregam à igreja, são de Deus. O fiel apenas está devolvendo o que corresponde ao todo poderoso. Não lhe pertence. Então para estar em dia como dizimista, deve-se dar mais 10% da parte que pertence ao crente. Aí sim é dízimo. Com essa interpretação elástica do texto bíblico, Waldemiro mostra aos seus detratores, que não é tão fundamentalista assim.  Mas essa não é a “última” a que me referia no título.
                A grande inovação de Waldemiro Santiago é o dízimo sobre a renda que o fiel deseja ter. Não é uma maravilha?  Funciona como uma espécie de suborno. Deus já fica comprometido, não tem como falhar. Nem a Máfia italiana pensou em algo assim para vender sua proteção.
                Agora, cá entre nós, para propor uma coisa dessas não basta uma mente em constante ebulição, com a de Waldemiro, há que se ter uma cara de pau capaz de causar inveja ao próprio Edir Macedo. E ele tem. Com seu olhar enviesado, seu andar de caipira, o apóstolo cruza o palco de sua igreja e com voz pausada, mas firme, manda distribuir o saquitel para a arrecadação de ofertas. Não é saquinho nem envelopinho, é saquitel. Waldemiro dá também sua contribuição para o vocabulário neo-pentecostal. E tem saquitel para todos os gostos e bolsos; saquitel dourado, saquitel “dízimo dos montões”, saquitel “coluna da casa de Deus” e por aí vai.
                Pelo andar da carruagem, qualquer dia desses Marcus Valério vai pedir autógrafo pro Waldemiro. Êta, Jesus Maravilhoso.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Niemeyer


                Dias atrás, amargando uma insônia, corri os canais de TV em busca de alguma coisa que me fizesse dormir. Talvez um jogo da seleção espanhola ou um  encantador de cachorros ou ainda um desses falsos documentários com atores ruins interpretando personagens históricos.  Busca daqui, busca dali, acabei encontrando um programa sobre alienígenas do passado ou algo assim. Pronto, pensei: isso é sonífero pra elefante. 
                Mal comecei a escutar a lenga-lenga de Erich Von Däniken, entrou uma seção de comerciais e um baixinho hiperativo gritava, berrava, tinha ataques e convulsões tentando convencer os insones a comprar uma máquina que esguicha água. Corri a mão tentando buscar o controle remoto que me livraria dos gritinhos do baixinho hiperativo. Depois de alguns segundos de aflição, consegui mudar de canal.
                Julguei-me com sorte, pois se necessitava um anestésico, um barbitúrico, ali estava um. Era um programa sobre arquitetura ecológica ou algo do gênero.  Eu já havia visto outro episódio da série e me lembrava da casa, que para economizar energia em sua iluminação, girava para ficar sempre voltada para o sol. Imagino a quantidade de energia despendida para fazer girar a imensa construção. Seu criador parecia não ser muito bom de aritmética e estava satisfeitíssimo com sua monstruosa engenhoca.
                Nessa noite de insônia, outro gênio mostrava sua obra.  Segundo o arquiteto, a casa fora desenhada para integrar-se à natureza e bla bla bla. Tudo fora concebido para economizar energia com iluminação e refrigeração e bla bla bla. Ao fim da exposição, seu idealizador se disse realizado. A casa era sua contribuição para a humanidade, para a salvação do planeta, para um mundo melhor, para o futuro de seu neto e do meu. Bem, ele não disse com essas palavras, mas foi o que quis dizer. A imodéstia do sujeito, sua pretensão, eram maiores que a casa. Sua visão de mundo, que compreendia apenas alguns centímetros ao redor do umbigo, se perdia na imensidão do terreno, de grama aparada, sem nada que lembrasse a tal natureza. Imediatamente pensei em Niemeyer.
               Quando estava perto de completar 100 anos de vida, o arquiteto concedeu uma entrevista na qual afirmava que “arquitetura não tem a menor importância, que importante era mudar o mundo”. Naquela fase da vida, da fama, do reconhecimento público, Niemeyer já estava muito além da falsa modéstia. Sua frase correspondia às suas convicções de velho comunista.
               Num outro momento de extremo comedimento, o poeta do cimento armado, se auto definiu como “um homem comum que se divertiu e trabalhou, riu e chorou, nada de especial”.
               Niemeyer não lia nem gostava de conversar sobre arquitetura, segundo suas próprias palavras, papo de especialistas era muito chato. Quando foi para o cerrado plantar seus prédios e monumentos, suas igrejas e palácios, levou em sua equipe não só arquitetos, levou gente. Gente era a matéria de sua obra, mais que o cimento e o ferro.
                Ao morrer, Niemeyer deixa além de sua obra, grandiosa e originalíssima, a inspiradora visão de quem queria mudar o mundo. Ao lado do povo.



domingo, 2 de dezembro de 2012

O ENEM segundo Mercadante


                Semana passada, saiu o resultado do ENEM. Deu o que todos já esperavam: apenas 10 escolas públicas estão entre as 100 com melhores notas. Apenas 1 entre as 10 primeiras. Também, como era de se esperar, veio uma desculpa esfarrapada do Ministério da Educação.  Mas dessa vez, Aluísio Mercadante resolveu inovar.
                Como todos sabem, Mercadante, que é economista, dormiu ciência e tecnologia e, depois de uma reparadora noite de sono, acordou educação.  Numa de suas primeiras falas, já empossado na nova pasta, Mercadante fez uma apologia dos “tablets” que, segundo sua visão, substituirão os livros de papel nas nossas escolas públicas com grande ganho e economia de verbas. Claro, o homem ainda estava de ressaca da ciência e tecnologia. Passou o tempo, e nossos meninos nada viram de “tablets”. Paciência. Um dia eles estarão em todas as escolas públicas do país para gáudio de seus fabricantes, e Mercadante entrará para a história como inventor da modernidade.  
                Mas como ia dizendo, Mercadante resolveu inovar nas desculpas que sempre são dadas depois da constatação anual que nosso ensino público anda entregue às traças. Disse o Ministro que a superioridade de resultados no Exame Nacional do Ensino Médio, das escolas privadas sobre as públicas, está no fato das escolas particulares selecionarem seus alunos e as públicas serem escolas de portas abertas, escola para todos.
                Confesso que tive de esperar o jornal da noite para corroborar o que pensava haver escutado. Batata. O Ministro dissera aquilo mesmo.  Temi estar totalmente desatualizado sobre os fatos da educação do Brasil. Teriam acabado os exames de seleção para entrar no Pedro II do Rio, no Colégio Estadual de Belo Horizonte, nos colégios de aplicação das universidades federais e estaduais?  Esses centros de educação, antes tão disputados, estariam hoje com as portas abertas para todos?  E as escolas técnicas? Também disporiam de tantas vagas excedentes? 
                Assim como o Ministro, essa noite fui dormir pensando na educação. Mas não acordei ministro da ciência e tecnologia ou da pesca, nem sequer secretário de parques e jardins. A manhã, que não me transformara em conhecedor das coisas da administração, me trouxe apenas uma convicção: o Ministro mentira. Sim, pois todas as escolas públicas do ensino médio que antes eram referência de qualidade na educação, continuam selecionando seus alunos. Há sim exames de ingresso. Não há vagas para todos. Entram os melhores. Mas ainda assim seus estudantes não conseguem competir com os alunos das escolas privadas num teste de conhecimento. Uma exceção aqui, outra ali. Dessa vez foi o Colégio de Aplicação da Universidade de Viçosa, que conseguiu intrometer-se entre os 10 de melhor desempenho.
                Numa outra parte de sua fala, Mercadante, para não mentir mais e ser apenas incoerente, disse que os alunos que pertencem a essas escolas públicas que selecionam seus estudantes, têm média superior aos alunos do ensino privado. Então, por que não há nenhuma outra entre as 10 melhores? Como economista, nosso Ministro da Educação prefere falar de médias e percentuais e, é claro, também vai promover um seminário sobre educação.
                O ENEM, assim como seu congênere para o ensino universitário, deveria servir para que o governo conhecesse suas falhas e apontasse soluções para o problema, cada vez mais grave, da educação no Brasil. Mas não é isso o que vemos. Após cada ano, após cada constatação que o ensino público brasileiro vai de mal a pior, vemos as autoridades dando as mais deslavadas desculpas ou, como é o caso de agora, mentindo.
                Fosse um aluno que desse uma resposta tão absurda sobre uma questão, estaria reprovado. Com Mercadante, o máximo que pode acontecer é, um dia desses, dormir educação e acordar presidente da Petrobrás.


sábado, 24 de novembro de 2012

Suplicy


                Confesso que nunca simpatizei com o Suplicy. Aquele seu jeito de maluco tarja preta, eu nunca engoli. Além do mais, ele é um rico que se tornou figura importante dentro de um partido que deveria ser dos trabalhadores. Ocupa um espaço que não lhe pertence.
                Suplicy protagonizou as cenas mais ridículas do senado nos últimos tempos. E quando fala sério, é através dos mais entediantes discursos. Adora adornar suas falas com citações de autores e títulos estrangeiros cujos nomes pronuncia com forçado acento.
                Ele já usou chapéu de Robin Hood,  chorou em plenário lendo uma carta, cantou uma música de Bob Dylan em companhia de Tiririca e aparteou, com sua voz molenga, todos os que discursaram na tribuna do Senado. Tudo isso só no último mês. O cara é um chato de galocha e suspensório.
                Mas, verdade seja dita, Suplicy é um bom senador. De seus projetos, eu conheço pouco, pois toda vez que ele começa um pronunciamento, caio em sono profundo. Sei do “renda mínima” pelo qual vem batalhando desde o governo de Fernando Henrique Cardoso e que muito influenciou nos projetos sociais do governo Lula.
                Numa outra esfera, também não pude deixar de admirar o Senador paulista. Foi no caso da morte de Celso Daniel. Enquanto o PT e a polícia faziam finca pé na tese de crime comum, mesmo que todos os dados apontassem para crime de cunho político, Suplicy , só, foi buscar informações nas ruas de Santo André com possíveis testemunhas do seqüestro. Pergunta daqui, pergunta dali e a história do Sombra caiu por terra.
                Suplicy, noutro gesto de independência, assinou o documento pela criação da CPI dos Correios contra a vontade de seu partido, que preferia empurrar os fatos para debaixo do tapete.  
                Sempre me pareceu que a independência de Suplicy era suportada pelos sargentões do PT, por ser ele um campeão de votos. Foram três eleições consecutivas. Uma cadeira certa para o Partido dos Trabalhadores no Senado da República.
                Mas algo mudou no PT de uns anos para cá. Se não bastassem as alianças espúrias que o partido fez com todos aqueles que passaram diante de sua sede oferecendo uns minutinhos no horário eleitoral gratuito ou uns votos no legislativo. Como se fora pouco o escândalo do mensalão que atingiu figurões do partido. Se não pesasse sobre os ombros de seus deputados e senadores o relatório da CPI do Cachoeira, o PT se prepara para dar mais uma mostra de pragmatismo extremo.
                Visando às eleições de 2014 para o Palácio dos Bandeirantes, o partido deve trocar a vaga para disputar o senado por apoio de aliados ao seu candidato a governador. Como nesse ano só uma cadeira de senador estará em jogo, Suplicy deverá ser sacrificado.
                Suplicy, que recebeu o Prêmio Congresso em foco deste ano como melhor senador, poderá deixar de concorrer, ficando sua vaga para Chalita ou Netinho de Paula.
                Cito esses dois nomes por tê-los vistos em matérias de jornais que comentaram a possível insensatez do PT, mas como o leque de alianças do partido é quase infinito, poderemos ter surpresas. Quem sabe o PT não resolva apoiar a candidatura ao senado de alguém saído das hostes malufistas. Ou, o próprio Doutor Maluf. Tudo é possível no toma-lá dá-cá que os petistas estão se tornando mestres.
                Por falar em Maluf, Haddad já disse que uma secretaria da prefeitura paulistana irá para o PP por obra e graça dos minutinhos de TV que o partido proporcionou a ele no último pleito. Mais uma vez, o malufismo poderá contribuir para o engrandecimento de São Paulo.
                Mas voltando ao Suplicy.
                Logo depois que encerrou seu dueto com Tiririca, na entrega do Prêmio Congresso em foco, o Senador deixou claro para os jornalistas que o entrevistaram, que iria pedir prévias para a escolha dos nomes de candidatos às eleições de 2014 pelo PT. Chegou a sugerir que as prévias fossem abertas a candidatos de outros partidos aliados, tal qual aconteceu na França recentemente. A idéia é meio amalucada como o próprio Senador Suplicy, mas ele está confiante no seu taco.





quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Racismo e abolicionismo



                Após uma temporada de boas leituras, estou lendo agora dois livros muito ruins. Ou melhor, dois livros que não estão me agradando. Dito assim fica melhor. Afinal quem disse que sou crítico literário para afirmar que tal ou qual obra é boa ou ruim?
                Um dos livros se chama Enigma para atores. Seu autor, Patrick Quentin. Trata-se de um romance de suspense.  Comecei a lê-lo por dois motivos: primeiro porque é de papel, portátil, e eu precisava de algo para ler no corredor do posto de saúde enquanto aguardava  consultas. Segundo porque é de uma coleção criada por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares.  Deixei-me levar. Sei que Borges é um admirador confesso do gênero suspense. Confiei no seu critério. Mas como disse o poeta: cu e gosto, cada um tem um.
                 Se o livro não me agrada, por que continuo lendo? Você certamente perguntará. Acontece que para mim é muito difícil abandonar livros pela metade. Não que eu me iluda pensando que algo que comece pessimamente vá terminar bem. Não. É apenas uma fraqueza de meu caráter. Nunca fui bom de abandonos. Nem de livros, nem de mulheres. Assim que vou lendo a insulsa trama já sabendo, mesmo antes de chegar à metade do volume, quem é o culpado.
                O outro livro que me tem refém de seu previsível desfecho é “A carne” de Júlio Ribeiro.
                O autor é um dos representantes do naturalismo no Brasil. Até bem pouco tempo, o único escritor desta corrente literária que eu havia lido, era Aluísio Azevedo e lendo agora a obra de Júlio Ribeiro, me dou conta do motivo de minha ignorância. Simplesmente o autor e sua obra não passaram pelo filtro do tempo. Já Aluísio Azevedo, perpetuou-se em seguidas reedições de seus livros e o mais popular deles, “O cortiço”, ganhou versão cinematográfica. Por isso Azevedo chegara a mim e Júlio Ribeiro, não.
                “A carne” está dedicado a Émile Zola, que o autor chama de príncipe do Naturalismo. A dedicatória, que na versão impressa está em francês, é de uma subserviência cultural sem limites. Cafona e piegas.  
                Embora o autor faça grande alarde da influência que o escritor francês teve sobre sua concepção literária, a personagem principal de “A carne” pouco tem de naturalista. É, antes, uma típica heroína do romantismo, do pior do romantismo. Exceto por uma coisa: o tesão.
                A moça, que aos 22 anos é cabaçudíssima, já nos primeiros capítulos está tecendo fantasias sexuais, até com uma estatueta de bronze. (Não do jeito que você está pensando, degenerada amiga).
                Isto se passa na fazenda onde ela se hospedou depois da morte do pai. Ela, que vivia apenas para as artes e as ciências, agora se descobre tesuda e só. Aqui o autor nos diz o que para a heroína era sentir desejos carnais; “cair de repente, como os arcanjos de Milton, do alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da CARNE, espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer... era a suprema humilhação”.  E olha que a moça era a fina flor da sabedoria científica!
                Bem, era aqui que eu queria chegar. Esqueça o que vai acima e me desculpe pela inépcia da expressão.  Vamos ao que interessa.
                Num outro trecho do romance, a heroína tem um encontro com um escravo de seu protetor. O diálogo entre eles é o que segue:  
                _"Sinhá, olhe como está essa perna: está toda ferida. Ferro pesa muito, fale com o sinhô pra tirar.
E mostrava o tornozelo ulcerado pela pega, fétido, envolto em trapos muito sujos.
                _Mas o que você fez para estar sofrendo isso?
                _Pecado, Sinhá, fugi.
                _Era maltratado, estava com medo de apanhar?
                _Nada, Sinhá: negro é mesmo bicho ruim, às vezes perde a cabeça”.
               O diálogo, totalmente inverossímil, foi escrito por um abolicionista. Sim, Júlio Ribeiro era abolicionista.  Assim como outros de sua geração e condição social, Júlio Ribeiro militou na causa da libertação dos escravos. Nem por isso deixava de ser racista, como mostra o diálogo acima. Muitos dos que se engajaram na luta antiescravista, não o fizeram por crer na igualdade entre os seres humanos, mas por outros motivos.É comum encontrarmos escritos do século 19, nos quais seus autores se lamentam pela imagem do Brasil na Europa, devido à escravidão. Alguns apontam para as relações econômicas prejudicadas pelo trabalho escravo. Outros aludem ao amor cristão para condenar a exploração dos escravos. De igualdade e justiça pouco se fala.
               Não nos esqueçamos que Júlio Ribeiro pertencia à nata da intelectualidade nacional sendo, inclusive, membro da Academia Brasileira de Letras. 
                Joaquim Nabuco, outro ilustre antiescravista, em seu livro “O abolicionismo”, nos dá uma amostra do pensamento vigente entre alguns dos que defendiam a causa da libertação dos escravos: ”Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras.” Nabuco, fundador da Sociedade Antiescravidão Brasileira, foi também um dos fundadores da ABL.
                José Veríssimo, outro acadêmico, fala nesses termos da questão racial: “A mistura de raça é facilitada pela prevalência do elemento superior. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já começa a ocorrer.”
                Esse modo de pensar não ficou acumulando poeira como a obra de Júlio Ribeiro. Está vivo. Para comprovar isso, basta que leiamos o que se tem escrito sobre o sistema de cotas nas universidades. Houve quem afirmasse que a simples presença dos cotistas (negros e mulatos), faria cair o nível do ensino superior no Brasil. Esse mesmo ensino superior que produziu Júlio Ribeiro, Nabuco e José Veríssimo.





segunda-feira, 19 de novembro de 2012

E não falo mais no assunto


                A historinha exemplar é velha e conhecida de todos, mas não custa repetir: O padre morre na zona, nos braços da puta. O que há aí, de notícia? Certamente não é a puta, que se encontrava no seu lugar de trabalho exercendo sua profissão milenar. A notícia é o padre.
                É o mesmo que vemos agora no julgamento do mensalão.
                Roberto Jefferson e seu partido, se é que se pode chamar assim, receberam, de porteira fechada, os Correios em contrapartida de uma aliança política das mais espúrias.  Jefferson resolveu explorar uma das maiores estatais do país do seu modo. Até uma criança de colo sabe como é o modo Jefferson de administrar a coisa pública. Mas aqui, a notícia não é Jefferson (este, conhecemos desde o programa popularesco de TV que o projetou) e sim a política de alianças do PT. Quem faz aliança com Roberto Jefferson pode esperar o que?
                A história da entrega dos Correios ao ex-gordo e ex-deputado e suas conseqüências,  merece ser relembrada, pois os petistas perderam a memória repentinamente. Mas você deve se lembrar das imagens mostradas um milhão de vezes no horário nobre das TVs: Os arapongas, o petequeiro, que cita Jefferson ao receber “um qualquer”, o ex-gordo na CPI, suas acusações contra José Dirceu. Os réus confessos, Silvinho Pereira e sua Land Rover, Delúbio e sua fazenda. Duda Mendonça confessando que recebeu dinheiro fora do país por serviços de propaganda prestados aqui e etc e etc.
                O partido de Lula, que em determinada época de sua existência, recusava-se a fazer alianças com o comunismo histórico e com Leonel Brizola, agora, é uma casa da Mãe Joana. Seus aliados preferenciais são José Sarney, Renan Calheiros, Fernando Collor de Merda, Waldemar da Costa Neto, Roberto Jefferson e, para assombro dos ingênuos, Paulo Salim Maluf.
                Não custa também relembrar o apoio do PT a Sarney no caso dos “atos secretos do Senado”. Nomeações irregulares, nepotismo, abuso de poder. Tudo gravado nas mais singelas conversas telefônicas entre o último coronel e sua prole. A oposição pedia a destituição de Sarney da presidência do Senado. O caso era simples. Mas com o apoio do PT, Sarney saiu ileso. Continuou presidindo a casa e nem teve de dar muitas explicações. Tudo em nome da governabilidade.
                O mesmo havia se passado com Renan Calheiros.
                No primeiro caso de terceirização de pensão alimentícia que se teve notícia, Renan tinha suas obrigações para com uma filha que teve fora do casamento, pagas por uma empresa. Para se defender, o deputado usou até notas fiscais frias, mas o processo por falta de decoro parlamentar morreu nos votos secretos do plenário da Câmara, com o auxílio luxuoso de seus aliados petistas. Se tivesse sido reeleita, a ex-deputada Ângela Guadagnin teria dançado sua grotesca dança da pizza em homenagem ao companheiro Renan, como já fizera para o Deputado João Magno.
                Só para demonstrar que a prática não é tão incomum, consta dos autos da Ação Penal 470, que a ex-mulher de José Dirceu conseguiu um emprego no BMG, durante o auge do esquema. Maria Ângela da Silva Saragoça, também levantou um papagaio no Banco Rural e vendeu seu apartamento para Rogério Tolentino, advogado das empresas de Marcus Valério e seu sócio em outras transas. Mesmo assim, os petistas mais fanáticos dizem que não há, nos autos, nenhuma prova que Zé Dirceu seja o mentor do esquema de compra e venda de apoio parlamentar.  Como se algo pudesse acontecer dentro do PT sem, pelo menos, a anuência do Czar Zé Dirceu.
                Os petistas querem que acreditemos que Zé Dirceu, Ministro da Casa Civil e responsável pela articulação política do governo, nada sabia das operações de Delúbio, o gênio. Que o financiamento a partidos e parlamentares foi feito sem seu conhecimento. Dos empréstimos fictícios, dados ao Partido dos Trabalhadores pelo Banco Rural e assinados por José Genuíno como seu presidente, Dirceu, também nada saberia.
               Na CPI dos Correios, Delúbio sempre se referiu ao dinheiro público que era usado para comprar apoio parlamentar, como doações não contabilizadas. (Se você se lembrou da operação Uruguai de Fernando Collor de Merda, lembrou bem). Assumindo um crime menor, o professor (espero que não seja de português) tinha, na época, certeza que tudo seria esquecido e viraria piada de salão, segundo suas próprias palavras. Não foi assim.
               Hoje, não podendo defender os acusados no caso do mensalão sem que isso pareça uma ofensa à inteligência das pessoas, os petistas usam a tática de acusar os julgadores. Falam de julgamento político esquecendo-se que a maioria dos Ministros que hoje compõem o STF, foi indicada por Lula ou por Dilma. Defendem as posições de Lewandowisk, sem mencionar que quem sempre o acompanha nos votos é o Ministro Toffoli, que sequer teve a honradez de pronunciar-se inapto para julgar o caso devido à sua proximidade com Zé Dirceu e a alta cúpula do PT, para quem advogou em passado recente.
               Outro argumento risível dos atuais petistas é que o STF está a serviço das elites descontentes com o modo petista de governar. O companheiro Sarney concorda. O companheiro Maluf anui.


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Diabetes


                Não sei jogar xadrez. Quando a morte (aquela, do filme do Bergman) chegar, eu vou pedir é pra jogar porrinha.  Valendo a cerveja. E sou marraio. Acho que ela vem de lona, afinal, é a morte do filme do Bergman e deve ter o comportamento estereotipado do símbolo. Ela, em si, é o nada. Na certa, vem de lona.
                Vou montando minhas estratégias, pois a tenho visto por perto. (A morte do filme do Bergman) Fui diagnosticado com diabetes há uns meses e quando começaram os sintomas clássicos da doença, eles chegaram com tudo. Achei que ia empacotar. Felizmente, pelo menos para mim, melhorei com o tratamento. Mas meu pâncreas faliu e tenho de tomar insulina. Só uma picadinha na barriga duas vezes por dia. Até que é agradável, comparada com dor de dente e jeito na coluna.
                Foi minha mulher que, pesquisando na internet, diagnosticou minha doença. Desde então ela vive buscando dietas e tratamentos.
                Há muitos sítios com variada informação sobre o diabetes que, segundo dados do Ministério da Saúde, já atinge quase 6 milhões de brasileiros. A parte divertida fica por conta dos sítios que prescrevem dietas. Num deles, o médico dá sugestões de refeições com menos  calorias que as servidas em Auschwitz. Você morre de inanição antes do diabetes fazer o serviço.
                Na dieta desse doutor, há espaço para porções de frutas, mas com asterisco. Quando vamos ao pé do texto conferir a indicação, nos deparamos com seu conceito de porção de frutas. Diz o preclaro galeno:  _”Entenda-se por porção de frutas, a porção que você serviria, cerimoniosamente, para uma visita”. O que quis dizer o doutor, com isso? Quantos bagos de jaca eu deveria servir a uma visita? Quantas bananas? A pitanga vai com caroço? Sei lá. Fiquei com a impressão que o doutor recebe poucas visitas.
                Tem também os sítios naturebas que prescrevem coisas naturais e caseiras para melhorar a vida dos diabéticos. Em alguns deles, minha mulher encontrou receitas do leite de alpiste. O problema é que eles divergem entre si sobre a ordenha da herbácea.
                Muita coisa é sugerida para a saúde do diabético, com óbvio prazer sádico. Por exemplo: água de berinjela. A quem lhe ocorre amargar ainda mais a vida de um doente com tal sugestão?  Nesse caso, a receita manda deixar fatias de berinjela dentro d’água durante a noite e de manhã, em jejum, beber o líquido resultante. Só pode ser sacanagem. Se uma berinjela já é horrível mesmo disfarçada com nome francês e queijo por cima, imagina xixi de berinjela!
                Agora, entenda minha situação. Eu, um sujeito macho, espada, pernambucano honorário, tendo de falar de índice glicêmico, dietas e leite de alpiste. É triste. Mas tem pior.
                Acontece que ademais dos estragos no pâncreas, o diabético ganha de brinde unas cuantas cositas más. No meu caso, foi uma complicação no pênis. O urologista foi logo dizendo que, na maioria dos casos como o meu, era questão de cirurgia. Uma pequena cirurgia. Não sei se ele queria me tranqüilizar ou estava me sacaneando com esse negócio de ”pequena”. De qualquer modo, não guardei mágoa do doutor. Há que se entender que um cara que passa sua vida manipulando pintos enfermos tem de sacanear alguém de vez em quando. Mas não foi preciso a “pequena” cirurgia. Tudo se resolveu com uma pomadinha à moda antiga.
                Outra alegria que me trouxe a doença foi saber que anteontem ela fazia aniversário. Pois é, 14 de novembro é o Dia mundial do Diabetes. Não do diabético, do diabetes. Disso fiquei sabendo através do sítio da APAD, Associação Paranaense do Diabético Juvenil. Aliás, o que não falta são associações para defender meus direitos e interesses. Se eu morasse em Belo Horizonte poderia contar com a ASSODIBELO. Em Ouro Preto, com a ASSODIOP. Em Barbacena, além do hospício, tem a ASSODIBAR e por aí vai. Existe até mesmo uma Federação das Associações de Diabéticos do Estado de Minas Gerais, a FEADEMG.
                Como se vê, além de matar, o diabetes também gera siglas monstruosas. Efeito colateral.








terça-feira, 13 de novembro de 2012

Lições do mensalão


                Vai chegando ao fim o julgamento da Ação Penal 470 que pela boca de Roberto Jefferson, ganhou o apodo de “mensalão”. Pois foi ele quem batizou a prática da compra e venda de apoio parlamentar com esse nome. Em seu depoimento na CPI dos Correios, Jefferson tratou de atribuir a outro a autoria do dito, mas estou convicto que foi ele seu inventor. E digo mais: foi de improviso. Creio ter visto nos olhos do ex-gordo e ex-parlamentar, enquanto depunha na CPI, cercado da atenção dos meios de comunicação, o brilho do criador contente com seu achado.
                Os desdobramentos daquele depoimento, hoje são vistos nas condenações que recebem seus participantes, ativos e passivos, por parte dos membros do STF. Coisa impensável até poucos anos atrás, tem até uma presidente de banco, condenada há mais de dez anos de prisão. Junto a ela, figurões do PT e seus aliados, publicitários, advogados, gente graúda.
                Jefferson já não sorri com seus achados lingüísticos. Delúbio se equivocou quando disse que tudo seria esquecido e viraria piada de salão. Zé Dirceu mantém a pose e a arrogância, seus advogados falam em julgamento político, tribunal de exceção. A imprensa, que se diz independente, enxovalha ministros e tenta desqualificar o tribunal e seu veredicto. Cabe agora o último recurso aos réus: os embargos de declaração para os quais a corte está atenta e não deve dar ensejo a mais essa manobra protelatória.
                Ademais das duras disputas verbais entre o Ministro Relator e o Ministro Revisor, chama-me a atenção de leigo, o fato de termos no Brasil um ordenamento jurídico bastante robusto. Digo isso pensando em nossa representação parlamentar. Cada vez que ouço nossos senadores e deputados, fico me perguntando como pode daquelas casas sair qualquer lei que não seja um despautério. No entanto elas aí estão, como por encanto. Claro que nem tudo está disposto como deveria, principalmente se levarmos em conta que nossa Constituição é extremamente minuciosa.
                Numa sessão acontecida há poucos dias atrás, a Corte teve de deliberar se dava ou não direito a voto na questão da dosimetria das penas a quem, em sentada anterior, havia absolvido os réus. Optou-se por negar-se tal voto. Não me arrisco a entrar no mérito da questão, mas me chama a atenção que tal fato não houvesse ocorrido antes naquela colenda corte e tudo devesse  ser resolvido durante o julgamento.
                Há outras questões para as quais nossa lei maior é omissa e, mais cedo ou mais tarde, deverão ser enfrentadas. Por exemplo: Sabemos que só quem pode representar o Ministério Público perante o Supremo, é o Procurador Geral da República. Mas se o Ministério Público resolver representar contra o Procurador, como fica?
                Mas com questões omissas ou não, o julgamento da AP 470 vai pondo por terra o discurso dos indignados profissionais que pululam nas redes sociais e da imprensa mal informada. Para aqueles, o julgamento não daria em nada, para esses a questão era tirar proveito eleitoral do julgamento. Todos caíram do cavalo.
                Contra os réus, pesam acusações devidamente fundamentadas nos autos. Estes estão prenhes de provas e indícios. Ainda assim, o Ministro Lewandowisk  teima em ir contra a corrente do bom entendedor. Referindo-se ao depoimento em juízo do Bispo Rodrigues, no qual Sua Excelência Reverendíssima confessou ter recebido um dinheirinho do esquema de Marcus Valério, Sua Excelência, o ministro, disse que Rodrigues havia confessado o ilícito com candura, creio que foi esse mesmo o termo empregado por Lewandowisk.  Ora, esqueceu-se o Ministro dos anos de treinamento de Rodrigues na Igreja Universal?  Não se deu conta que esse assunto de pegar um dinheirinho, de qualquer mão, é tema dos mais corriqueiros para os bispos e pastores daquela seita?  Não é candura, é cara dura.
                Outros réus também mereceram o beneplácito de Sua Excelência, principalmente, quando de formação de quadrilha se tratou. Suas posições têm causado grandes embates com o Ministro Joaquim Barbosa e anteontem não foi diferente. Após dura reprimenda do Ministro Relator, Lewandowisk abandonou o plenário com grande esvoaçar da toga.
                Acontece que o Ministro Revisor está abusando das delongas. Já leu, ao proferir um voto, um artigo de jornal  e também  depoimentos de testemunhas de defesa que só são arroladas para gastar tempo. São, geralmente, amigos do réu que nada trazem para contestar as acusações. Nessa última leitura, o Ministro Presidente ponderou que eram mais de seiscentas testemunhas e se o depoimento de cada uma fosse lido... Nesse ponto, Lewandowisk encerrou a leitura afetando conformismo com a alusão de Aires Brito. Nesse e em outros casos, há que louvar-se a atitude do Presidente do STF. Sempre ponderada e apaziguadora, embora firme.
                Quanto às penas, essas têm sido brandas se nos ativermos a cada crime. As condenações mais se aproximam do mínimo estipulado nas leis, sendo acrescidos por motivo da reiteração com a qual os delitos foram praticados. Mas como são tantos os crimes praticados por cada réu, a soma das condenações promete deixar em regime fechado muita gente que jamais supôs estar nessa situação.
                Para mim, o mais importante é não nos deixarmos iludir pelas vozes grandiloqüentes que bradam que o país está sendo passado a limpo com esse julgamento. Nem por um instante, tal idéia me ocorreu. Essa ação da Corte Suprema, deve ser vista, segundo penso, apenas como punitiva. Corruptos e corruptores não fazem caso de exemplos. O próprio Marcus Valério, já depois de iniciado o processo que agora chega ao fim, meteu-se em outras falcatruas e foi preso novamente. Os casos de superfaturamento em obras do PAC e da Copa, são conhecidos de todos e seus autores andam por aí como se nada lhes possa passar. O escândalo provocado pelo caso Demóstenes, que pôs em evidência nomes de políticos e suas relações pouco republicanas com Carlinhos Cachoeira, Cavendish e outros, é muito posterior à CPI dos Correios e do processo agora em curso. Ninguém temeu ser apanhado, nem passar pelo constrangimento público de uma CPI ou algo que o valha.
                O poder e o dinheiro advindos da corrupção, continuarão gerando inquéritos, julgamentos e punições. Sem que haja reformas profundas na legislação eleitoral, no sistema de licitações e na fiscalização dos atos de governo (Tribunal de Contas incluído), nada fará parar a sanha patrimonialista, a cultura da propina, a deslavada corrupção.




 







segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Racismo e MPB


                Em dezembro de 2011, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, manteve a decisão de multar a gravadora Sony em 1 milhão de 200 mil reais, por racismo. Trata-se do caso da música “Olha os cabelos dela” do cantor e Deputado Federal, Tiririca. A ação foi ajuizada em 1997 quando a “canção” foi gravada.
                Na época, o caso teve grande repercussão, mas só depois de 14 anos saiu a decisão da qual já não cabe recurso. Até onde sei, é a primeira vez que a indústria fonográfica é afetada por um ato jurídico dessa natureza. Creio também que a execução da “música” foi proibida tão logo entidades do movimento negro entraram com a ação judicial. Mas por que só a “música” de Tiririca sofreu tal reparo?
                Outro dia, num programa esportivo, surgiu o tema do racismo e um jornalista disse que não se deve levar a ferro e fogo as questões de injúria racial, que se assim fosse, não se poderia mais cantar  “O teu cabelo não nega” de Lamartine Babo. O jornalista que fez a ponderação, é um dos melhores que atuam na crítica esportiva e é mulato. Mas a ressalva feita por ele não é, a meu ver, cabível.
                A marchinha de Lamartine Babo não deveria mesmo ser cantada. Se contássemos com críticas que mostrassem seu caráter racista, aos pouco as bandas que seguem executando sua melodia nos salões dos bailes  carnavalescos, deixariam de fazê-lo. Mas não. Nossa crítica está preocupada com outras coisas, nosso jornalismo está mais empenhado em combater o sistema de cotas raciais do que em mexer com o passado e o racismo.
                O que se deu com Tiririca, jamais se daria com Lamartine. Se aquele não passa de um fabricante de tolices para entretenimento de idiotas, este é um monstro sagrado da MPB. No entanto, os versos “O teu cabelo não nega mulata por que és mulata na cor, mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero seu amor”, está tão eivado de racismo quanto os “versos” de “Olha os cabelos dela”. Tiririca é mais grosseiro, Lamartine apela para o amor que quer da mulata, afinal a cor não pega. E se pegasse “seu” Lalá?  
                Em comum, as duas composições têm algo mais: o gracejo. Se Tiririca não atinge seu objetivo de fazer rir com sua “música” por pura falta de talento, Lamartine, dominador da língua, dos versos e melodias, consegue ser gracioso e divertido à custa da mulata. O mesmo fazem David Nasser e Rubens Soares com sua “Nega do cabelo Duro”. Aí, é o puro deboche. Fala-se de uma característica física de um povo como algo risível e grotesco. Nessa composição, já não se promete amores, não se louvam as curvas nem os encantos da mulata, pois de mulatas não se trata e sim de negras e, como se sabe, o preconceito no Brasil é mais de cor do que de raça.  A música mereceu sisuda gravação de Elis Regina, tendo seus versos misturados com “Aquarela do Brasil”. Confesso que até hoje não entendi, nem a mistura das letras, nem o tom sério que Elis usou para interpretá-la.
                Nos anos 90, Luis Caldas perpetrou “Fricote” que também fala em “nega do cabelo duro” com o mesmo conteúdo debochado e racista. Entre “Seu cabelo não nega” e a “música” de Caldas, passaram-se mais de 60 anos. Se a justiça deu um tímido passo, punindo a gravadora de Tiririca, nossa sociedade não fez o mesmo e continua achando engraçado escarnecer de negros e mulatos. A vítima preferencial desse escarnecimento é a mulher negra. Freud explica.
                Quem deixa negras e mulatas de lado e prefere falar do homem negro como motivo de piada, é Sérgio Porto, o Stanislau Ponte Preta, em seu “Samba do crioulo doido”.
                No preâmbulo do samba, Sérgio Porto explica que o motivo do “crioulo” ter endoidado foi o enredo da escola: “conjuntura nacional”.  Para nossas elites, e também para os que dela pensam fazer parte, o povo pobre em geral, e os negros em particular, são perfeitos idiotas, uns boçais, pessoas abaixo de entendimento mediano das coisas. Sendo assim, qualquer tentativa de aproximação com o mundo “culto” resulta em loucura, doidice. Um negro, compositor de sambas de enredo, jamais poderia entender o que significa conjuntura nacional.
                Esqueceu-se Sérgio Porto que desde sempre os sambas de enredo foram compostos por gente negra e pobre. Nenhum tema deixou de ser abordado, nenhuma história deixou de ser contada pelos compositores das escolas.  Um bom exemplo é Mano Décio da Viola, que muito antes de compor seu antológico samba de enredo “Exaltação a Tiradentes”, já fizera, ao lado de Silas de Oliveira, “Conferência de São Francisco”, samba que falava da fundação da ONU.  Mano Décio cantou desde D. João VI até a Batalha do Riachuelo. De Bárbara Heliodora até o Brasil Holandês. E esse compositor é apenas um exemplo de como não há “conjuntura nacional” que iniba a verve criadora dos “crioulos”. Dizer o contrário é puro racismo.
                Mas tem o outro lado da moeda na nossa música popular. Quando Chico César gravou “Respeitem meus cabelos, brancos”, houve gente que não gostou. Conta o compositor, que através das redes sociais, algumas pessoas gastaram seu tempo para mandar-lhe mensagens dizendo que estavam deixando de ser seus fãs por ele ser uma pessoa raivosa. Quem conhece a música, sabe que nada há de raivoso na letra, pelo contrário. O jogo de palavras que Chico César faz, parafraseando o samba de Herivelto Martins e Marino Pinto, é um achado. Mas como é coisa de negro, não pode. Pedir respeito é ser raivoso.







sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Racismo


                Outro dia, escrevi aqui sobre Monteiro Lobato e a conotação racista de certos trechos de sua obra mais conhecida, “O sítio do picapau amarelo”. Recebi, via facebook, um comentário de um leitor que me honrou com sua atenção. Dizia ele que estava lendo “Clarissa” do Érico Veríssimo e também via na obra do autor gaúcho, certos signos de racismo. Sem embargo, esse leitor objetava que se tratava de uma visão de mundo da época em que os textos (tanto o de Lobato quanto o de Veríssimo) foram escritos e que não se podia dizer que esses escritores fossem racistas. Que hoje, certamente, eles teriam uma outra forma de pensar.
                 Peço venia ao leitor amigo para uma fundamental discordância. Creio sim, que esses escritores eram racistas. Não de um racismo intolerante à moda americana ou européia, mas à brasileira. Aqui nega-se a igualdade não com a Ku Klux Klan, mas com o paternalismo. Não com o apartheid, mas com a  marginalização. E o pior: ninguém se diz racista. Sequer se acha racista.
                 Parece-me, que na sociedade brasileira, assim como em qualquer outra formada e deformada pelo pensamento europeu, etnocentrista e explorador, a ideia de superioridade racial sempre esteve presente e não se diluiu com o passar do tempo, como muitos querem fazer crer. Pelo contrário. Bastou o advento das cotas raciais para ingresso nas universidades, para que se desatasse uma onda de ódio contra os “privilégios” dados aos negros e mestiços.
                 Notabilizam-se na defesa da “igualdade” os senhores Magnoli e o filósofo televisivo Luis Felipe Pondé. Se o primeiro procura fundamentar sua opinião nos dados genéticos e outros argumentos “científicos”, o outro apenas esgrima um trololó histérico muito acorde com sua personalidade. Mas se não fossem as políticas compensatórias promovidas pelo governo, esses senhores nem abordariam o tema, quem os conhecesse jamais veria neles qualquer laivo racista. Pelo contrário. Aliás, sempre foi assim e nossa literatura, nosso jornalismo e nossa história, estão repletos de exemplos de como a ideia da superioridade racial vive entre nós.
                 Acabo de ler a “História da literatura brasileira” de José Veríssimo, livro escrito nos começos do século 20, e lá encontrei, além do bom texto e do trabalho acurado de pesquisa, expressões como “raças inferiores” ditas como verdades incontestáveis. Mas se fôssemos perguntar ao senhor José Veríssimo se ele era racista, a resposta seria desenganadoramente, não. O mesmo se passa com o livro que agora vou terminando, “O missionário” de Inglês de Souza. Nessa obra, quase nunca se fala de índio (palavra que o autor substitui por “tapuio”) sem o acompanhamento do adjetivo “boçal”.  O mesmo vale para os negros. Mas, estou convicto que o autor se negaria a assumir seu racismo.
                 Assim como hoje, o racismo sempre gostou de travestir-se de ciência. Foi sob os auspícios do darwianismo social que ele entrou glorioso no século 20, justificando o colonialismo, a exploração e o saque das riquezas dos continentes não brancos. Mesmo os criacionistas anglicanos, se amparavam nessa interpretação capenga da teoria da evolução das espécies para justificar o genocídio de populações que eram mostradas como entraves ao progresso.
                 Com o seqüenciamento do DNA humano, dá-se o mesmo. Há alguns poucos anos, colheram amostras de sangue de Daiane dos Santos e do Neguinho da Beija Flor, fizeram testes e constatou-se que ambos tinham um grande percentual de DNA ariano. Pronto. Se por um lado a pesquisa pôs por terra a ideia de pureza racial e mesmo o critério de raças dividindo os seres humanos, por outro, deixou o espaço para que os adversários das cotas raciais argumentassem de maneira enviesada.
                 Acontece que o Neguinho da Beija Flor não é o Arianinho da Beija Flor e os antepassados de Daiane dos Santos não foram escravizados por que eram baixinhos ou por terem errado um duplo mortal carpado. O nome de um e a ancestralidade da outra, contam uma história totalmente diferente.
                  João do Rio, em seu saboroso livro “As religiões do Rio”, ao fazer um apanhado dos cultos religiosos minoritários da então Capital Federal, tem para com todos, muito respeito e consideração. Exceto pelos cultos de matriz africana. O escritor, que era mulato, não vê nessas manifestações religiosas senão charlatanismo e fraude. Escolhe a dedo exemplos de pais de santo que exploram a crendice do povo e o trabalho das filhas de santo.  Para as outras práticas religiosas, só elogios e afagos.
                 São inúmeros e eloqüentes os exemplos, mas empalidecem diante dos textos que hoje se publicam contrários ao sistema de cotas. Antes, como agora, o difícil não é encontrar as manifestações de racismo, o difícil é encontrar quem assuma o que realmente pensa.






terça-feira, 23 de outubro de 2012

O livro dos recordes


                O mais novo inscrito no Livro Guinness de recordes é o austríaco que saltou de para quedas de uma altura enorme. Preparou-se 5 anos para executar o salto e bateu 2 ou 3 recordes. Até aí nada de mais, afinal, a estupidez humana não tem limites. O que merece menção é a atenção que os meios de comunicação dedicaram ao feito.
                Havia uma empresa de comunicações patrocinando o evento e, imagino, contratos publicitários e de direito de imagem com dezenas de páginas e milhares de cláusulas. A Globo News transmitiu ao vivo e com grande expectativa no estúdio, suas jornalistas numa excitação de entrega do Oscar, casamento da realeza inglesa ou outro acontecimento transcendental. Com a ingenuidade digna de um asno, cheguei a pensar que se tratasse de algum experimento científico. Não. Era apenas o velho ser humano movido pela idiotice.
                Eu sou um homem comum, e por uns instantes pensei em seguir a transmissão que poderia terminar com um purê de sangue e vísceras no deserto.  Fiquei curioso por saber qual seria a profundidade do buraco que faria um corpo despencando de tão grande altitude. Mas deixei pra lá. Afinal, saiu tudo bem para o “herói contemporâneo”. Nas TVs e jornais, houve opiniões de “especialistas” e de um brasileiro que ambiciona repetir e melhorar a façanha.
                Nunca entendi o fascínio que  provoca no ser humano assistir outros seres humanos fazendo coisas inúteis e tontas. O livro dos recordes é a prova cabal que esse fascínio vai além do que se possa imaginar.
                Assim é toda vez que alguém atinge o cume do Himalaia. Depois de descer com os pés congelados, o sujeito é alvo de toda espécie de reportagens e entrevistas. Conta das agruras pelas quais passou para realizar seu objetivo, fala dos filhos, do sonho de infância, de seu amor pelo Corínthians e o escambau. E olha que uma porção de gente já fez o mesmo. Claro que para entrar no livro dos recordes fazendo o que muita gente já fez, os novos “heróis” recorrem à especificidades que, supostamente, os distinguiria. Por isso, no livro Guinness está registrado o nome do 1° cearense que chegou ao cume do Everest subindo pelo lado norte, de tardinha e do escocês que atingiu aquelas alturas acompanhado pela sogra sem equipamento de respiração.  (Pra sogra, é claro)
                Quando alguém como eu, que não vê o menor sentido nesses feitos, tem a ousadia de perguntar pelo propósito daquilo, o detentor do recorde de saltos sobre uma perna só ou o escalador de geleiras em traje de banho, mira do alto o estúpido interlocutor e fala de auto-superação, do limite do ser humano ou de uma promessa feita ao pai moribundo.
                O fato incontestável é que estamos cheios desses “heróis contemporâneos”. Qualquer um que nade bem, corra rapidinho, ou pule mais longe, recebe logo adjetivos que antes estavam reservados àqueles que salvavam vidas, lideravam revoltas contra tiranos ou dedicavam seus dias expandindo o conhecimento humano.
                Mas parece que essa gente não sai bem na foto e precisamos, hoje em dia, de gaiatos que são apontados como exemplo de superação, de disciplina, de dedicação ao inútil.



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Um lance do Rei


                Às vezes me pego pensando se eu realmente teria visto aquilo ou, traído pela memória, estaria dando como vistas coisas ouvidas, contadas por quem  realmente as presenciou. Mas não. Eu vi, sentado naquele sofá cor de mostarda que já mostrava suas entranhas de espuma, numa TV Telefunken , a maior seleção que o mundo viu jogar. 
                Sim, eu vi Pelé, Tostão, Gerson e o Furacão. Eu vi O Capitão, o Corró, Rivelino. Eu vi Everaldo, Piazza, Brito, Félix.  Eu vi o Brasil levantar a Jules Rimet e apossar-se dela para sempre. Eu vi lances geniais daquele time de craques. Mas um deles eu guardo com mais carinho na lembrança, pois é, talvez, o mais representativo do futebol brasileiro em todos os tempos. Num só lance, todas as qualidades de nossos craques.
                Foi no segundo jogo. Enfrentávamos os ingleses, os campeões de 66, que haviam ido para o México defender seu título.  Ainda agora os vejo com suas camisas brancas impecáveis de corte. Sua arrogância congênita. Seu jogo pesado que na Copa da Inglaterra ficou conhecido como futebol força. Foi um jogo duro.
                Já no primeiro tempo, Gordon Banks fez uma defesa, numa cabeçada de Pelé, que entrou para a antologia dos milagres de goleiros. No mais, um jogo que valia como final antecipada daquele mundial. Pelo menos pra nós.
                O segundo tempo transcorria como o primeiro, com ataques perigosos de ambas as equipes até que uma bola alcançou Tostão pela esquerda. O Mineirinho de Ouro costurou dois adversários e quando um terceiro veio na cobertura, o craque do Cruzeiro deve ter se lembrado do futebol força que os idiotas da objetividade de nossa crônica esportiva, exaltavam desde nosso fracasso em 66.  Para aqueles técnicos de redação, o futebol brasileiro estaria sepultado, pois não sabia praticar o futebol força que era a nova realidade para todo o sempre.  Pois bem. Quando aquele inglês veio cobrir sua lateral direita, Tostão soltou-lhe o antebraço na cara. Soltou mesmo, com força. O praticante do futebol força, o súdito da rainha, o anglicano, estava fora da jogada, levava as mãos ao rosto atingido pelo braço de Tostão.
                Mas o craque brasileiro ficara de costas para a área, entre a linha de lado e a linha lateral da grande área e fazendo o que Waldir Amaral chamaria de um corrupio, cruzou a bola praticamente sem ver. O cruzamento saiu duplamente perfeito. Primeiro, porque caiu nos pés de um companheiro e depois porque esse companheiro era Pelé.
                Dentro da grande área, o Rei fez o domínio, o corpo arqueado à frente, todos os músculos prontos para responder ao lume, à espoleta de seu raciocínio. Fico imaginando o que teria passado na cabeça daqueles gringos que marcavam Pelé, naquele segundo em que Ele dominou aquela bola. Sim, pois de seus pés poderia vir qualquer coisa. Pelé podia fazer qualquer coisa. Se quisesse, recuaria de calcanhar para o Félix na outra área. Se lhe apetecesse poderia ter mandado parar o jogo e fazer uma declaração pela paz universal. Se preferisse, poderia exigir uns mariachis e cantar Cielito lindo. Pelé podia tudo. Todos sabíamos disso e prendemos a respiração. Os marcadores ingleses também. Só Pelé mantinha seu fôlego inalterado, sereno.  O que faria Pelé?  Perguntavam-se os zagueiros, a rainha e o primeiro ministro. Aquele pentelhésimo de segundo de perplexidade inglesa diante do fenômeno negro brasileiro, foi fatal.
                Do alto de seus 29 anos, de sua exuberância física e técnica, o Rei elegeu a simplicidade, optou pelo singelo.  Viu Jairzinho penetrando pela direita e num toque isento de qualquer afetação, botou o Furacão na cara do gol. Jair, que viria a marcar em todos os jogos daquela Copa, poderia ter batido de primeira, mas deu ainda um toque para acomodar melhor a pelota e cravou o chute perfeito. Gol do Brasil.
                O 1 X 0 foi o placar final daquele jogo, que hoje, muitos que o viram, dizem que qualquer das duas seleções poderia ter vencido. Enganam-se. Só o Brasil poderia ter vencido aquela partida, pois só o Brasil tinha Pelé, Tostão e Jairzinho. Mas, sobretudo, porque só o Brasil tinha Pelé.  O maior jogador de futebol de todos os tempos.
                Ainda na Copa de 70, Pelé protagonizou vários lances geniais. Marcou gols, deu passes precisos, driblou, fez o diabo. Até os gols que não fez, foram espetaculares. Sem contar que um ano antes havia atingido a marca estratosférica de 1000 gols. Mas se fosse só por aquele lance contra a Inglaterra em terras aztecas, sua realeza no futebol já estaria garantida.
                Quando terminou sua carreira, jogando nos EE.UU, Pelé possuía um rosário de títulos e glórias e foi, sem dúvida, o maior divulgador do nome de nosso país.
                Neste 23 de outubro, Édson Arantes do Nascimento completa 72 anos de vida. Desde que parou de jogar, há quase 40 anos, não passa um ano em que Pelé esteja nos meios de comunicação fazendo propaganda de algum produto. Sua chancela representa credibilidade.  Fora de nossas fronteiras, o nome de Pelé se confunde com o do Brasil. Aqui, crianças que poderiam ser seus bisnetos, tataranetos, correm para abraçá-lo, para tocá-lo com a mesma emoção dos que o viram, menino, chorar no ombro de Gilmar naquele longínquo 1958.
                Viva o Rei. Feliz aniversário, Pelé.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Maldade


                Meus problemas com a escola nunca foram de aprendizagem ou relacionamento. Eu sempre adorei a escola; a camaradagem dos colegas, o carinho da grande maioria dos professores, enfim, minha curta vida escolar sempre me pareceu uma festa. Minhas notas eram boas, um deslize aqui outro ali, nada de mais.
                Meus problemas com a escola foram sempre de ordem burocrática. Eu nasci em agosto e tive que entrar no 1º ano do primário com os 7 anos já feitos. Se tivesse nascido 3 dias antes, em 31 de julho, poderia ter sido matriculado um ano antes. Hoje, isso se chama data de corte. No meu tempo de menino devia ter outro nome, mas o espírito burocrático é o mesmo.
                Outra coisa que me atrapalhou, foi o vezo de minha família que vivia se mudando de Minas para o Rio e do Rio para Minas. Assim que, tendo concluído o 2º ano primário No Grupo Escolar Bernardo Monteiro, em Belo Horizonte, e ter sido aprovado com um boletim cheio de notas 10 e 9, fomos morar no Rio.
                Nessa época, a Secretaria de Educação do Estado da Guanabara havia mudado a nomenclatura dos cursos e o sistema de avaliação. Já não existia mais o 1°, 2º, 3°... anos e sim o “Nível A, B,C, etc.  Acontece que o “Nível A” correspondia ao pré-primário, o “Nível B” ao 1°ano e assim por diante. Sem as informações necessárias, minha mãe matriculou-me no “Nível 3” da Escola Pública Dr. Cócio Barcelos, em Copacabana, causando-me a perda de mais um ano. Isso também é comum até hoje, e todas as reformas que são feitas na educação são dessa natureza; mudam-se os nomes das coisas que estão erradas, não as coisas em si.
                 Eu tinha também outro defeito além do de ter nascido uns dias atrasado: eu sempre fui alto, o que me fazia ser o maior da turma ou o segundo maior.  Pois bem.
                Num desses dias felizes em que freqüentava o “Nível 3”, Dona Márcia, a professora, faltou. Alguém entrou na sala e nos dividiu em duplas e fomos encaixados em outras turmas. Para meu desgosto, não me colocaram em dupla com o Sérgio Franco Flores nem com o Ricardo, tampouco com o Rogério, meus parceiros de futebol de botão e discussão futebolística. Acho que seguiram um critério de altura e lá fui eu com o único garoto que era mais alto que eu naquela turma, para assistir uma aula em sei lá que outro “Nível”.
                Engraçado é que não me lembro desse garoto como meu confrade, meu colega do dia-a-dia. Dele, só me lembro desse episódio. Sem embargo, sua fisionomia, seu jeito de andar, sua voz, me vêm à mente de forma tão clara como se tivéssemos nos visto ontem.
                Ele não só era o mais alto da turma como também o mais velho. Devia estar 3 ou 4 anos atrasado, talvez por motivos parecidos como os meus. Era um gigante gentil com suas calças curtas, seu cabelo claro partido de lado que escorria de um lado da testa, seu andar de tímido. O fato de não lembrar-me dele, a não ser por esse caso, deu-se, creio, por isso: ele era um gigante gentil e tímido.
                Puseram-nos no fundo de uma classe e lá ficamos esperando que o tempo passasse. Num dado momento ele me sussurrou algo e, tentando ser discreto, mostrou-me um canivete que trazia. Era um pequeno canivete, um objeto de desejo para um menino daqueles tempos. Não só pelo proibido, mas por ser algo distante de nossos bolsos. Ademais, sua posse conferia grande prestígio ao dono.  Mas esse prestígio estava restrito ao mundo masculino e uma garota nos flagrou na inspeção do pequeno artefato e prontamente se levantou para praticar a mais vil das atitudes humanas: a delação.
                Tal prática seria impensável entre os meninos. Um dedo-duro era visto como o pior dos insetos, o mais abominável dos seres rastejantes, o mais patife entre os patifes. Enfim, um puxa-saco da professora. Mas as meninas estavam fora desse sentido ético que compartilhávamos e adoravam ser puxa-saco das professoras.
                Dessa garota que nos entregou, não guardo nem a mais remota lembrança, mas quero imaginá-la de tranças. Daquelas tranças das quais não escapa nem um fiozinho. Gosto de imaginá-la com o cós de sua saia plissada acima do umbigo, dando-lhe um ar de palhaça e com o elástico das meias ¾ deixando-lhe uma marca vermelha nas pernas gordas.
                Delatado, o Gigante Gentil foi chamado pela professora. Caminhou com seu passo de tímido entre as carteiras, sob o olhar do bando de pascácios daquela turma.
Não lembro o que ele falou para se defender, mas lembro que fiquei impressionado com sua desenvoltura e humildade diante daquela professora estranha. Fora eu o chamado, e estaria vermelho de timidez e pavor, balbuciando qualquer coisa. Mas ele saíra incólume da inquisição e creio que a mestra lhe permitiu permanecer de posse do canivete desde que o mantivesse guardado.
                Ainda hoje o vejo voltando para a carteira que compartilhávamos com seu longo rosto de gigante gentil.  Já não me importavam os olhares que os pascácios nos dirigiam, pelo contrário. Sentia-me bem por ser amigo do Gigante Gentil que era dono de um canivete. Continuamos ali sentados até a hora da merenda.
                A escola tinha um refeitório que servia a cada dia algo diferente. Diferente, mas repetido da 1ª à última semana do ano letivo. Eu, e creio que todo mundo, preferia o dia do chocolate quente com biscoito. Tinha outra coisa que eu também gostava, mas não há maneira de lembrar. O dia da sopa era passável e o do arroz doce também. Mas na sexta feira tinha o arroz com peixe. Horas antes da merenda, toda a escola era inundada pelo cheiro forte do peixe cozido.  Eu não só odiava o cheiro do peixe como também não suportava  a visão daquele arroz todo grudado, um legítimo unidos venceremos.
                Claro que não me lembro se no dia dos fatos que estou narrando o prato era o fatídico arroz com peixe.  Minha memória quer que sim, mas não passa recibo.
                O que sim me lembro, foi que ao transpormos a porta que dava para esse refeitório, o Gigante Gentil e eu passamos por duas professoras, uma delas a que nos tocara naquele dia. Falavam de nós, certamente comentando o caso do canivete. Quando estávamos no ponto mais próximo a elas pudemos ouvir claramente (pois falavam para que escutássemos) o que uma delas dizia: _E desse tamanho no “Nível 3”. Sua voz tinha um desprezo e uma condenação inéditos para mim. Mas, verdade seja dita, tinha na ponta da língua a terminologia burocrática.
                Posso garantir que aquele desprezo, aquela condenação estava dirigida não só ao Gigante Gentil como a mim também. Era uma frase para nos rebaixar ao reino dos imbecis, e dita em voz alta, para que nos inteirássemos e não restassem dúvidas sobre nossa condição de retardados.  Nada comentei com o Gigante Gentil que também nada comentou. Cada um carregou consigo o peso daqueles segundos.
                Não posso dizer que desse dia em diante tenha passado a me preocupar com o fato de ser mais velho ou mais alto que a maioria de meus companheiros. Pouco depois disso escutei coisas piores e também tive de tragar sem opor argumentos em minha defesa.
                Esqueci, se é que alguma vez lembrei, do rosto daquelas professaras. Agora, tentando reconstruir o episódio, as deixo sem cabeças e meto-lhes discretas mini-saias cinzentas de tergal para combinar com suas blusas Ban lon cor de creme. São manequins que visto às pressas por uma espécie de pudor.
                Nunca havia contado isso para ninguém. Acho que por vergonha. Vergonha da maldade alheia.