terça-feira, 23 de outubro de 2012

O livro dos recordes


                O mais novo inscrito no Livro Guinness de recordes é o austríaco que saltou de para quedas de uma altura enorme. Preparou-se 5 anos para executar o salto e bateu 2 ou 3 recordes. Até aí nada de mais, afinal, a estupidez humana não tem limites. O que merece menção é a atenção que os meios de comunicação dedicaram ao feito.
                Havia uma empresa de comunicações patrocinando o evento e, imagino, contratos publicitários e de direito de imagem com dezenas de páginas e milhares de cláusulas. A Globo News transmitiu ao vivo e com grande expectativa no estúdio, suas jornalistas numa excitação de entrega do Oscar, casamento da realeza inglesa ou outro acontecimento transcendental. Com a ingenuidade digna de um asno, cheguei a pensar que se tratasse de algum experimento científico. Não. Era apenas o velho ser humano movido pela idiotice.
                Eu sou um homem comum, e por uns instantes pensei em seguir a transmissão que poderia terminar com um purê de sangue e vísceras no deserto.  Fiquei curioso por saber qual seria a profundidade do buraco que faria um corpo despencando de tão grande altitude. Mas deixei pra lá. Afinal, saiu tudo bem para o “herói contemporâneo”. Nas TVs e jornais, houve opiniões de “especialistas” e de um brasileiro que ambiciona repetir e melhorar a façanha.
                Nunca entendi o fascínio que  provoca no ser humano assistir outros seres humanos fazendo coisas inúteis e tontas. O livro dos recordes é a prova cabal que esse fascínio vai além do que se possa imaginar.
                Assim é toda vez que alguém atinge o cume do Himalaia. Depois de descer com os pés congelados, o sujeito é alvo de toda espécie de reportagens e entrevistas. Conta das agruras pelas quais passou para realizar seu objetivo, fala dos filhos, do sonho de infância, de seu amor pelo Corínthians e o escambau. E olha que uma porção de gente já fez o mesmo. Claro que para entrar no livro dos recordes fazendo o que muita gente já fez, os novos “heróis” recorrem à especificidades que, supostamente, os distinguiria. Por isso, no livro Guinness está registrado o nome do 1° cearense que chegou ao cume do Everest subindo pelo lado norte, de tardinha e do escocês que atingiu aquelas alturas acompanhado pela sogra sem equipamento de respiração.  (Pra sogra, é claro)
                Quando alguém como eu, que não vê o menor sentido nesses feitos, tem a ousadia de perguntar pelo propósito daquilo, o detentor do recorde de saltos sobre uma perna só ou o escalador de geleiras em traje de banho, mira do alto o estúpido interlocutor e fala de auto-superação, do limite do ser humano ou de uma promessa feita ao pai moribundo.
                O fato incontestável é que estamos cheios desses “heróis contemporâneos”. Qualquer um que nade bem, corra rapidinho, ou pule mais longe, recebe logo adjetivos que antes estavam reservados àqueles que salvavam vidas, lideravam revoltas contra tiranos ou dedicavam seus dias expandindo o conhecimento humano.
                Mas parece que essa gente não sai bem na foto e precisamos, hoje em dia, de gaiatos que são apontados como exemplo de superação, de disciplina, de dedicação ao inútil.



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Um lance do Rei


                Às vezes me pego pensando se eu realmente teria visto aquilo ou, traído pela memória, estaria dando como vistas coisas ouvidas, contadas por quem  realmente as presenciou. Mas não. Eu vi, sentado naquele sofá cor de mostarda que já mostrava suas entranhas de espuma, numa TV Telefunken , a maior seleção que o mundo viu jogar. 
                Sim, eu vi Pelé, Tostão, Gerson e o Furacão. Eu vi O Capitão, o Corró, Rivelino. Eu vi Everaldo, Piazza, Brito, Félix.  Eu vi o Brasil levantar a Jules Rimet e apossar-se dela para sempre. Eu vi lances geniais daquele time de craques. Mas um deles eu guardo com mais carinho na lembrança, pois é, talvez, o mais representativo do futebol brasileiro em todos os tempos. Num só lance, todas as qualidades de nossos craques.
                Foi no segundo jogo. Enfrentávamos os ingleses, os campeões de 66, que haviam ido para o México defender seu título.  Ainda agora os vejo com suas camisas brancas impecáveis de corte. Sua arrogância congênita. Seu jogo pesado que na Copa da Inglaterra ficou conhecido como futebol força. Foi um jogo duro.
                Já no primeiro tempo, Gordon Banks fez uma defesa, numa cabeçada de Pelé, que entrou para a antologia dos milagres de goleiros. No mais, um jogo que valia como final antecipada daquele mundial. Pelo menos pra nós.
                O segundo tempo transcorria como o primeiro, com ataques perigosos de ambas as equipes até que uma bola alcançou Tostão pela esquerda. O Mineirinho de Ouro costurou dois adversários e quando um terceiro veio na cobertura, o craque do Cruzeiro deve ter se lembrado do futebol força que os idiotas da objetividade de nossa crônica esportiva, exaltavam desde nosso fracasso em 66.  Para aqueles técnicos de redação, o futebol brasileiro estaria sepultado, pois não sabia praticar o futebol força que era a nova realidade para todo o sempre.  Pois bem. Quando aquele inglês veio cobrir sua lateral direita, Tostão soltou-lhe o antebraço na cara. Soltou mesmo, com força. O praticante do futebol força, o súdito da rainha, o anglicano, estava fora da jogada, levava as mãos ao rosto atingido pelo braço de Tostão.
                Mas o craque brasileiro ficara de costas para a área, entre a linha de lado e a linha lateral da grande área e fazendo o que Waldir Amaral chamaria de um corrupio, cruzou a bola praticamente sem ver. O cruzamento saiu duplamente perfeito. Primeiro, porque caiu nos pés de um companheiro e depois porque esse companheiro era Pelé.
                Dentro da grande área, o Rei fez o domínio, o corpo arqueado à frente, todos os músculos prontos para responder ao lume, à espoleta de seu raciocínio. Fico imaginando o que teria passado na cabeça daqueles gringos que marcavam Pelé, naquele segundo em que Ele dominou aquela bola. Sim, pois de seus pés poderia vir qualquer coisa. Pelé podia fazer qualquer coisa. Se quisesse, recuaria de calcanhar para o Félix na outra área. Se lhe apetecesse poderia ter mandado parar o jogo e fazer uma declaração pela paz universal. Se preferisse, poderia exigir uns mariachis e cantar Cielito lindo. Pelé podia tudo. Todos sabíamos disso e prendemos a respiração. Os marcadores ingleses também. Só Pelé mantinha seu fôlego inalterado, sereno.  O que faria Pelé?  Perguntavam-se os zagueiros, a rainha e o primeiro ministro. Aquele pentelhésimo de segundo de perplexidade inglesa diante do fenômeno negro brasileiro, foi fatal.
                Do alto de seus 29 anos, de sua exuberância física e técnica, o Rei elegeu a simplicidade, optou pelo singelo.  Viu Jairzinho penetrando pela direita e num toque isento de qualquer afetação, botou o Furacão na cara do gol. Jair, que viria a marcar em todos os jogos daquela Copa, poderia ter batido de primeira, mas deu ainda um toque para acomodar melhor a pelota e cravou o chute perfeito. Gol do Brasil.
                O 1 X 0 foi o placar final daquele jogo, que hoje, muitos que o viram, dizem que qualquer das duas seleções poderia ter vencido. Enganam-se. Só o Brasil poderia ter vencido aquela partida, pois só o Brasil tinha Pelé, Tostão e Jairzinho. Mas, sobretudo, porque só o Brasil tinha Pelé.  O maior jogador de futebol de todos os tempos.
                Ainda na Copa de 70, Pelé protagonizou vários lances geniais. Marcou gols, deu passes precisos, driblou, fez o diabo. Até os gols que não fez, foram espetaculares. Sem contar que um ano antes havia atingido a marca estratosférica de 1000 gols. Mas se fosse só por aquele lance contra a Inglaterra em terras aztecas, sua realeza no futebol já estaria garantida.
                Quando terminou sua carreira, jogando nos EE.UU, Pelé possuía um rosário de títulos e glórias e foi, sem dúvida, o maior divulgador do nome de nosso país.
                Neste 23 de outubro, Édson Arantes do Nascimento completa 72 anos de vida. Desde que parou de jogar, há quase 40 anos, não passa um ano em que Pelé esteja nos meios de comunicação fazendo propaganda de algum produto. Sua chancela representa credibilidade.  Fora de nossas fronteiras, o nome de Pelé se confunde com o do Brasil. Aqui, crianças que poderiam ser seus bisnetos, tataranetos, correm para abraçá-lo, para tocá-lo com a mesma emoção dos que o viram, menino, chorar no ombro de Gilmar naquele longínquo 1958.
                Viva o Rei. Feliz aniversário, Pelé.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Maldade


                Meus problemas com a escola nunca foram de aprendizagem ou relacionamento. Eu sempre adorei a escola; a camaradagem dos colegas, o carinho da grande maioria dos professores, enfim, minha curta vida escolar sempre me pareceu uma festa. Minhas notas eram boas, um deslize aqui outro ali, nada de mais.
                Meus problemas com a escola foram sempre de ordem burocrática. Eu nasci em agosto e tive que entrar no 1º ano do primário com os 7 anos já feitos. Se tivesse nascido 3 dias antes, em 31 de julho, poderia ter sido matriculado um ano antes. Hoje, isso se chama data de corte. No meu tempo de menino devia ter outro nome, mas o espírito burocrático é o mesmo.
                Outra coisa que me atrapalhou, foi o vezo de minha família que vivia se mudando de Minas para o Rio e do Rio para Minas. Assim que, tendo concluído o 2º ano primário No Grupo Escolar Bernardo Monteiro, em Belo Horizonte, e ter sido aprovado com um boletim cheio de notas 10 e 9, fomos morar no Rio.
                Nessa época, a Secretaria de Educação do Estado da Guanabara havia mudado a nomenclatura dos cursos e o sistema de avaliação. Já não existia mais o 1°, 2º, 3°... anos e sim o “Nível A, B,C, etc.  Acontece que o “Nível A” correspondia ao pré-primário, o “Nível B” ao 1°ano e assim por diante. Sem as informações necessárias, minha mãe matriculou-me no “Nível 3” da Escola Pública Dr. Cócio Barcelos, em Copacabana, causando-me a perda de mais um ano. Isso também é comum até hoje, e todas as reformas que são feitas na educação são dessa natureza; mudam-se os nomes das coisas que estão erradas, não as coisas em si.
                 Eu tinha também outro defeito além do de ter nascido uns dias atrasado: eu sempre fui alto, o que me fazia ser o maior da turma ou o segundo maior.  Pois bem.
                Num desses dias felizes em que freqüentava o “Nível 3”, Dona Márcia, a professora, faltou. Alguém entrou na sala e nos dividiu em duplas e fomos encaixados em outras turmas. Para meu desgosto, não me colocaram em dupla com o Sérgio Franco Flores nem com o Ricardo, tampouco com o Rogério, meus parceiros de futebol de botão e discussão futebolística. Acho que seguiram um critério de altura e lá fui eu com o único garoto que era mais alto que eu naquela turma, para assistir uma aula em sei lá que outro “Nível”.
                Engraçado é que não me lembro desse garoto como meu confrade, meu colega do dia-a-dia. Dele, só me lembro desse episódio. Sem embargo, sua fisionomia, seu jeito de andar, sua voz, me vêm à mente de forma tão clara como se tivéssemos nos visto ontem.
                Ele não só era o mais alto da turma como também o mais velho. Devia estar 3 ou 4 anos atrasado, talvez por motivos parecidos como os meus. Era um gigante gentil com suas calças curtas, seu cabelo claro partido de lado que escorria de um lado da testa, seu andar de tímido. O fato de não lembrar-me dele, a não ser por esse caso, deu-se, creio, por isso: ele era um gigante gentil e tímido.
                Puseram-nos no fundo de uma classe e lá ficamos esperando que o tempo passasse. Num dado momento ele me sussurrou algo e, tentando ser discreto, mostrou-me um canivete que trazia. Era um pequeno canivete, um objeto de desejo para um menino daqueles tempos. Não só pelo proibido, mas por ser algo distante de nossos bolsos. Ademais, sua posse conferia grande prestígio ao dono.  Mas esse prestígio estava restrito ao mundo masculino e uma garota nos flagrou na inspeção do pequeno artefato e prontamente se levantou para praticar a mais vil das atitudes humanas: a delação.
                Tal prática seria impensável entre os meninos. Um dedo-duro era visto como o pior dos insetos, o mais abominável dos seres rastejantes, o mais patife entre os patifes. Enfim, um puxa-saco da professora. Mas as meninas estavam fora desse sentido ético que compartilhávamos e adoravam ser puxa-saco das professoras.
                Dessa garota que nos entregou, não guardo nem a mais remota lembrança, mas quero imaginá-la de tranças. Daquelas tranças das quais não escapa nem um fiozinho. Gosto de imaginá-la com o cós de sua saia plissada acima do umbigo, dando-lhe um ar de palhaça e com o elástico das meias ¾ deixando-lhe uma marca vermelha nas pernas gordas.
                Delatado, o Gigante Gentil foi chamado pela professora. Caminhou com seu passo de tímido entre as carteiras, sob o olhar do bando de pascácios daquela turma.
Não lembro o que ele falou para se defender, mas lembro que fiquei impressionado com sua desenvoltura e humildade diante daquela professora estranha. Fora eu o chamado, e estaria vermelho de timidez e pavor, balbuciando qualquer coisa. Mas ele saíra incólume da inquisição e creio que a mestra lhe permitiu permanecer de posse do canivete desde que o mantivesse guardado.
                Ainda hoje o vejo voltando para a carteira que compartilhávamos com seu longo rosto de gigante gentil.  Já não me importavam os olhares que os pascácios nos dirigiam, pelo contrário. Sentia-me bem por ser amigo do Gigante Gentil que era dono de um canivete. Continuamos ali sentados até a hora da merenda.
                A escola tinha um refeitório que servia a cada dia algo diferente. Diferente, mas repetido da 1ª à última semana do ano letivo. Eu, e creio que todo mundo, preferia o dia do chocolate quente com biscoito. Tinha outra coisa que eu também gostava, mas não há maneira de lembrar. O dia da sopa era passável e o do arroz doce também. Mas na sexta feira tinha o arroz com peixe. Horas antes da merenda, toda a escola era inundada pelo cheiro forte do peixe cozido.  Eu não só odiava o cheiro do peixe como também não suportava  a visão daquele arroz todo grudado, um legítimo unidos venceremos.
                Claro que não me lembro se no dia dos fatos que estou narrando o prato era o fatídico arroz com peixe.  Minha memória quer que sim, mas não passa recibo.
                O que sim me lembro, foi que ao transpormos a porta que dava para esse refeitório, o Gigante Gentil e eu passamos por duas professoras, uma delas a que nos tocara naquele dia. Falavam de nós, certamente comentando o caso do canivete. Quando estávamos no ponto mais próximo a elas pudemos ouvir claramente (pois falavam para que escutássemos) o que uma delas dizia: _E desse tamanho no “Nível 3”. Sua voz tinha um desprezo e uma condenação inéditos para mim. Mas, verdade seja dita, tinha na ponta da língua a terminologia burocrática.
                Posso garantir que aquele desprezo, aquela condenação estava dirigida não só ao Gigante Gentil como a mim também. Era uma frase para nos rebaixar ao reino dos imbecis, e dita em voz alta, para que nos inteirássemos e não restassem dúvidas sobre nossa condição de retardados.  Nada comentei com o Gigante Gentil que também nada comentou. Cada um carregou consigo o peso daqueles segundos.
                Não posso dizer que desse dia em diante tenha passado a me preocupar com o fato de ser mais velho ou mais alto que a maioria de meus companheiros. Pouco depois disso escutei coisas piores e também tive de tragar sem opor argumentos em minha defesa.
                Esqueci, se é que alguma vez lembrei, do rosto daquelas professaras. Agora, tentando reconstruir o episódio, as deixo sem cabeças e meto-lhes discretas mini-saias cinzentas de tergal para combinar com suas blusas Ban lon cor de creme. São manequins que visto às pressas por uma espécie de pudor.
                Nunca havia contado isso para ninguém. Acho que por vergonha. Vergonha da maldade alheia.






quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Valores







Gostaria de falar sobre duas coisas rápidas, um feijão com arroz básico. Vou tentar temperar direitinho.
Primeiro: Eu nunca entendi qual a função dos conto infantis tradicionais. Se for só para entreter e atemorizar as crianças, vá lá, acho que cumprem bem sua missão. Mas me parece que contos infantis deveriam trazer algo mais, algum ensinamento, talvez uma lição.
Claro que de muitos contos, conheço apenas traduções de traduções, versões de versões. Chapeuzinho Vermelho se salva mais ou menos; tenta ensinar obediência. Eu digo tenta, pois quando criança, esse ensinamento não me comoveu muito. O que me impressionava na história, eram pessoas inteiras saindo da barriga do lobo.
 E os outros contos, o que tentam ensinar? Será que João e Maria quer ensinar a  crianças abandonadas, sobrevivência na selva? E João e o pé de feijão? Deseja esse conto? Instruir pivetes na arte de roubar gigantes?
Uma vez li algo sobre o significado dessas estórias infantis. Creio que foi num livro do Eric Fromm, mas posso estar misturando as estações. O texto que li, abordava o tema pelo ângulo do significado oculto. Assim que Chapeuzinho Vermelho falaria sobre a menstruação, a menina está virando mulher, daí a cor do chapeuzinho. Não lembro o que se dizia sobre o Lobo Mal, mas dá para imaginar. Quanto à Vovó...
Segundo: Nossa sociedade, como qualquer outra, tem seus valores. Alguns deles, dividimos com outros povos, outros cultivamos sós e a mistura de tudo que temos como nossa maneira de ser nos faz um povo diferente de outros povos.
Um desses valores, eu diria que é a afetividade. Somos beijoqueiros e abraçadores. Nunca tememos demonstrar nosso afeto, nosso carinho mesmo que o objeto desse afeto, desse carinho, seja um desconhecido. Já nos apresentamos aos beijos. Aos dois, aos três, muito estalados. Se estamos entre os nossos essa afetividade se alastra ainda mais, muito mais.
Imagino que isso venha de nossa mistura racial e os outros povos que se formaram da mesma maneira, compartilhem conosco essa maneira de ser. Carinhosa, afetiva e fraterna.
Mas muito nos diferimos dos estadunidenses. Isso fica patente quando assistimos um filme americano. Ninguém nessas fitas se abraça se não tiver um motivo muito grande para isso. Quando o fazem, e não são namorados, a cena é melosa e falsa. Moças e rapazes apertam as mãos quando são apresentados. Se forem descolados, nem isso. Nessas apresentações e despedidas sempre parece que alguém acabou de vender um seguro ou um carro usado para o outro. Nas comédias estilo “city com” esse tema aparece muito e os que são um pouco mais carinhosos são tratados como chatos irrecuperáveis e são evitados.
Agora deixa eu pôr uma farinha nesse arroz com feijão.
Todavia aquelas estórias infantis tradicionais continuam sendo lidas e contadas por pais e avós em suas mais diversas versões. Existe hoje uma tendência às modificações politicamente corretas para não ofender madrastas, anões, feios, velhos, bruxos e principalmente animais. Mesmo assim elas continuam fazendo parte do imaginário infantil.  Mas, sem dúvida, o desenho animado tem hoje muito mais audiência que aqueles contos, estórias e fábulas que atravessaram gerações. Há muito tempo é assim. Acontece que nos dias de hoje com a TV por assinatura e seus canais especializados nesse tipo de diversão infantil 24 horas por dia, a coisa ficou dura pra carochinha.
O mundo infantil de hoje está povoado por personagens made in usa. Ou seja, produzidos com os valores made in usa. Na terra de Marlboro não há lugar para afagos ou afetos. O carinho é raro. Salta-se da grossura para a pieguice mais melosa. Outro dia mesmo eu assistia o Bob Esponja ser esculachado por ter uma marca de baton que sua avó havia lhe deixado no rosto. Todos riam dele, lhe diziam queridinho da vovó. Ao Gunball lhe passou algo pior quando foi obrigado a beijar sua avó Jojô e seus lábios tocaram os da velhinha; ele ficou traumatizado e seu irmão teve que ser muito inventivo para salva-lo da catatonia de que foi acometido.
Lá, na terra dos bravos matadores de índios, o carinho, o afeto, o afago, são mal vistos. Já quando começam a freqüentar a escola, os garotos rechaçam qualquer demonstração de afeto materno.
Eu acho que isso vem da formação religiosa puritana que sempre viu no amor entre as pessoas um empecilho à adoração de Deus. E nossos pequenos vão mamando esse tipo de concepção da pior maneira possível: a maneira engraçada.
Agora, quer um ovo frito? Pois bem.
Muito se tem falado do espaço que poderá ser aberto para a produção de conteúdo nacional na TV por assinatura. Eu espero que possamos ver mais de nós mesmos na televisão que tão caro pagamos. Acontece que não se pode obrigar esses produtores a adotar nem nossa linguagem nem nossos valores.
Outro dia, meu neto e eu assistíamos um episódio de Gui e Estopa, produção nacional de desenho animado, e lá estavam todos os estereótipos americanos que se encontram nas séries animadas daquele país. Os personagens estavam todos envolvidos com um encontro amoroso no melhor estilo “date”. Um dos personagens principais e uma outra personagem seriam apresentados e supostamente namorariam depois. Porém o cachorrinho, ou sei lá o que é aquele personagem, cometia as gafes que faz fracassar o encontro amoroso americano: ele sai do banheiro com um pedaço de papel higiênico preso no sapato, tem algo de comida preso aos dentes e bigode de groselha. Isso, por lá, é inaceitável numa “date”. Sabemos disso, pelas séries de TV para adolescentes e desenhos animados para crianças produzidos naquele pais.
Esse desenho, como já disse, é brasileiro e seu público alvo são crianças que não devem passar dos 7 anos. Pelo visto, seus produtores já estão prontos para o futuro, para o fim da afetividade.

sábado, 13 de outubro de 2012

A eleição de Joaquim Barbosa

                                                                                                                                                                                                       

                Essa semana, em meio ao julgamento da ação penal 470, tivemos a eleição do Ministro Joaquim Barbosa para presidência da mais alta corte do país. Cumpriu-se o rito com a elegância de sempre. Joaquim Barbosa foi eleito por 9 votos contra 1. Para muitos foi apenas uma formalidade já que nome e placar da votação eram sabidos de antemão. Mas enganam-se.
                A eleição de Joaquim Barbosa está repleta de simbolismo e sua formalização tem valor igual ou maior que o selo do Imperador em carta de alforria. Sim, pois é um homem negro que vai ocupar a cadeira de Presidente do Supremo Tribunal Federal.  Um homem negro, e é preciso que assim se diga. Não um afro-descendente ou qualquer outro eufemismo. Um homem negro.  Um descendente daqueles que aqui aportaram tendo grilhões a sujeitar-lhes braços e pernas e que produziram, sem embargo, um milagre cultural nessas terras.
                Assim como Rebouças e Milton Santos, Joaquim Barbosa atinge o ponto mais alto de sua carreira por sua alta capacidade, seu intelecto privilegiado. Mas isso nem sempre é suficiente quando se trata de uma pessoa negra. Há que matar um leão por dia para, simplesmente, afirmar sua humanidade.  
                Pois bem, todos os sacrifícios foram feitos, todas as lutas travadas e hoje temos um homem negro eleito por seus pares para presidir um dos três poderes da Nação. Depois de todas as injustiças sofridas pelos negros em nosso país, um homem negro presidirá a casa guardiã da constituição que reza em seu artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei”. Infelizmente não perante a sociedade, daí a importância da eleição de Barbosa, um homem negro.
                Talvez você, meu amigo, queira contestar essa minha insistência quanto à cor da pele do Ministro, recém eleito presidente do STF, opondo o valor maior do currículo de Joaquim Barbosa, sua trajetória brilhante desde a pequena Paracatu até a corte suprema, seu doutorado na Sorbonne ou mesmo o sistema de rodízio dos ministros do Supremo no comando do tribunal. Ora, meu caro, não sejamos hipócritas. Nesse país, que teima em maltratar seus filhos negros, a assunção de Barbosa à cadeira maior da maior das cortes, é um rasgo na história, uma afirmação.
                Tentar omitir a cor de Joaquim Barbosa, em nome da democracia racial, ou seja lá por que motivo, é o mesmo que tentar usar sua escolha para presidir a corte, como argumento contra as cotas raciais nas universidades. E, pode ter certeza, isso será feito.  A vitória desse homem negro, do povo negro, será usada contra ele.
                A luta empedernida contra as cotas raciais nas universidades públicas, que teve até mesmo um partido político como autor de uma ação de inconstitucionalidade, nos deu mostra de como nossa sociedade ainda deseja os privilégios de cor, de raça, de classe.
                A cobertura jornalística da eleição de Joaquim Barbosa padeceu, como era de se esperar, de profundidade. Pouco ou nada se falou de sua importância simbólica. Se não se fala na cor do Ministro, não se faz necessário falar do racismo, esse tema incômodo. Mas há muito que já não espero nada de nossa imprensa nem de nossas elites. Tampouco de nossa classe média que vê os que ascendem socialmente como uma ameaça aos seus mesquinhos privilégios
                Eu prefiro guardar na memória que no dia 11 de outubro de 2012 foi eleito para presidir o Supremo Tribunal Federal, um homem negro.


















sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A lógica do senhor Klein







Na história recente do país, tivemos candidatos muito ruins que saíram vencedores nos mais diversos pleitos. O melhor exemplo é Fernando Collor de Merda que chegou à Presidência em cima de um discurso barato e pose de galã de novela mexicana. Durou pouco seu desgoverno mas ainda causa perplexidade sua eleição.
Enéas também mereceu muitos votos, milhões deles, quando se candidatou ao mais alto cargo da República. Sem contar que muitos candidatos derrotados conseguiram angariar os votos de eleitores incautos que neles votaram sem saber bem por que motivo.
Roberto Jéferson, réu do mensalão, saiu de um programa popularesco de TV e chegou à presidência de uma casa de tolerância com sigla partidária. Do mesmo programa, saiu Wagner Montes que se tornou figura de proa do PDT fluminense. A bola da vez é Celso Russomanno.
Eu defendo esquálida tese de que o apresentador de TV é apenas um balão de ensaio da Igreja Universal visando às eleições presidenciais de 2014. Testam-se estratégias. A campanha do candidato do PRB à prefeitura paulistana é comandada por um pastor da igreja que se licenciou do lucrativo ministério para isso.
Liderando as pesquisas de intenção de votos, a campanha de Russomanno ganhou força própria e a Igreja Universal está muito próxima de comandar politicamente a maior cidade do país. Creio que nem mesmo eles esperassem tão bom desempenho do candidato apresentador. O certo é que os adversários de Russomanno, não.
Serra e Haddad se prepararam para trocar chumbo grosso entre si e, atônitos, assistiram o crescimento da candidatura do homem da Universal sem sequer aperta-lo no que ele tem de mais vulnerável: a ausência de idéias e programa de governo.
Só agora o confrontam com a realidade e Russomanno quando abordou a questão do transporte público da cidade logo expôs sua incapacidade e desconhecimento. Russomanno falou que quem anda mais de ônibus deve pagar mais.
Se a proposta do candidato afronta o bom senso, seja ele o da justiça social ou o da disputa eleitoral, isso se dá pelo seu despreparo político e intelectual. Mas o que me causou graça no episódio foi o que escreveu Cristian Klein para o Valor Econômico de 04/10.
Dizia o articulista que a proposta de Russomanno era “aparentemente lógica, mas perigosa eleitoralmente”.
Ora bolas, como assim “aparentemente lógica”? O normal, o lógico dentro de espírito capitalista é que quem consome mais um produto ou serviço pague menos por ele. Se eu tenho dois filhos na escola particular receberei um desconto na matrícula do terceiro. Se eu mando fazer 100 cartões de visita está claro que o preço por unidade baixará se eu mandar imprimir 500. No supermercado um pacote de café de meio quilo sai mais barato que 2 de 250 gramas.
Seria lógico que quem mais utilize o buzão pague menos por passagem. Além do mais, os moradores da periferia, que são os que mais utilizam o transporte público, não o fazem para visitar amigos ou ir ao futebol. Eles andam em dois ou três transportes em cada viagem para trabalhar, para produzir riquezas para outros.
A direita tradicional e liberal, sempre trata de esconder suas verdadeiras intenções quando dessas questões se trata. Uma vez instalada no poder promove seus despautérios e dá aumento de passagens para as empresas de transporte público que são fortes doadoras de campanha. Nessa Russomanno claudicou e perdeu vários pontos nas pesquisas de intenções de votos. Uma lição para 2014.
Outra lição? Não crer na lógica do senhor Klein.




segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O dia está chegando







Já não são os fatos que me assombram, mas a desfaçatez com que são urdidos. Por que eu deveria me assombrar com a manipulação de imagens e falas feitas pela Rede Globo? Bem, primeiro porque não havia a necessidade de dar mais ênfase ao julgamento do mensalão e depois pelo fato das imagens e áudios que foram montados em ordem diferente de como ocorreram, terem acontecido apenas umas horas antes. De qualquer maneira a TV dos Marinho não deixa de me assombrar.
Nem todos puderam acompanhar aquela sessão do STF que fora realizada à tarde. À noite, em suas casas, aqueles que assistiram um resumo do julgamento no Jornal das Dez da Globo News ou no Jornal da Noite da Globo, seriam convencidos que aquelas frases pinçadas, foram ditas naquela ordem, naquele contexto. Que as imagens que as ilustravam na tela foram colhidas no mesmo instante. Milhões de pessoas foram iludidas, enganadas. Apenas mais uma desfaçatez das emissoras dos Marinho.
Mas o que não deixa de causar assombro é que uma parcela da imprensa, que se diz independente, queira iludir e enganar como aqueles profissionais do ilusionismo jornalístico. Esse é o caso da Carta Maior.
Apenas hoje (2 de outubro), há dois artigos naquela publicação que comparam o caso do mensalão com o caso Dreyfus. Em outro artigo, o Ministro Joaquim Barbosa é tratado como vaidoso e personalista. Dias atrás, o julgamento em si era chamado de BBB. E por aí vai.
Claro que o Dreyfus dos artigos é o ex-Ministro José Dirceu. Seu dia está chegando e os negacionistas do mensalão se adiantam ao veredicto dos Ministros do STF, que não deve ser outro senão o da condenação, para tentar desmoralizar o processo e seus julgadores.
A tese, ainda sustentada pela publicação de Mino Carta, é a de que nunca existiu mensalão, que tudo é uma farsa urdida pela imprensa golpista. Se houve algo, foi apenas um caixa dois de campanha eleitoral. Ainda que haja réus confessos. Mesmo que a devassa promovida pela Polícia Federal nas empresas de Marcus Valério tenha arrebanhado caminhões de documentos. Para tudo há uma explicação capenga.
Em um dos artigos, o jornalista de Carta Maior chega a dizer que as acusações contra Dirceu se baseiam em encontros que este mantivera com banqueiros na qualidade de Chefe da Casa Civil e que isso não constitui crime. Em nenhum dos artigos aparece o nome de Marcus Valério nem o de outro publicitário, Duda Mendonça, que afirmou na CPI dos Correios ter recebido no exterior o que lhe era devido pela atuação nas campanhas do Partido dos Trabalhadores.
O segundo articulista fala de malabarismo jurídico e diz que tudo começou com a denúncia bombástica de Roberto Jéferson, que fizera isso por vingança. Não foi bem assim.
Tudo começou quando arapongas, fazendo-se passar por empresários, filmaram um funcionário dos Correios recebendo uma propina e citando o nome do ex-deputado e ex-gordo, Roberto Jéferson. Diante do vídeo, este teve que partir para o ataque e denunciou o esquema.
Depois, durante a CPI dos Correios, fomos conhecendo os pormenores de como o dinheiro subtraído dos cofres públicos, através das empresas de Marcus Valério e outras, ia parar nas mãos de deputados, tesoureiros e presidentes de partidos que recebiam em espécie para votar com o Governo Federal, matérias de difícil tramitação.
Até agora, os Ministros do Supremo só julgaram a escória política com a qual o PT se misturou em nome da governabilidade. Mas o dia de José Dirceu, José Genoíno e Delúbio Soares está chegando.