Eu tinha uns 10, 11 anos e como
toda minha turma, era doido por futebol. No recreio das aulas da Escola Cócio
Barcelos, D. Ilka, nossa professora, deixava que alguns de nós permanecêssemos
na sala para jogar botão. Éramos quatro, Sérgio Franco Flores, Ricardo eu e um
tricolor que embora tenha o rosto gravado na minha memória, não consigo lembrar
seu nome. Disputávamos um interminável campeonato que nunca teve um vencedor. O
campo de jogo era feito juntando-se quatro carteiras, que nessa época, eram planas
e enormes. Nosso torneio, alem das sempre discutidas regras do botão, tinha
mais uma que permitia que tocássemos nos jogadores quando esses não transpunham,
só com o toque da palheta, as barreiras que a união dos móveis escolares
formavam nos dois sentidos do campo. Mas os botões eram só a representação de
nossa verdadeira paixão; o futebol.
Vivíamos uma das épocas de ouro
do esporte no Brasil. A xenofobia européia mantinha fechados, vários mercados
aos craques sul-americanos e não éramos saqueados em mais essa riqueza. Nossa
seleção, que nos dias em que se passa essa narrativa encaminhava sua
classificação para o mundial do México, era composta apenas por jogadores que
aqui atuavam e eram os ídolos de nossos clubes. Futebol na televisão era raro. Acompanhávamos os campeonatos pelo rádio e pelos jornais que afanávamos das bancas principalmente nas
segundas-feiras. Naqueles tempos os jornaleiros penduravam os diários inteiros,
e não só a primeira página, na parte externa de seus negócios. Nossa técnica de
afano era simples e funcionava sempre. Enquanto um de nós fazia uma tremenda
onda para comprar um único pacotinho de figurinha distraindo o dono da banca,
um outro ia por trás e de um só puxão se apossava do Jornal dos Sports. Quando o
jornal de Mário Filho estava muito próximo à parte aberta da banca, líamos O
Globo. O único cuidado era trocar de banca toda semana.
Domingos a noite todos assistíamos
a Grande Resenha Esportiva Facit pela televisão e durante a semana as
impressões de João Saldanha, Nelson Rodrigues e José Maria Scassa, eram a base
de nossas discussões. Eu, como atleticano, tinha de me conformar com as
pequenas notinhas que saíam nos jornais com resultados e escalação dos times de
outros estados. Para não ficar sem ter o que discutir eu me inclinava pelo
Botafogo que na época tinha o melhor time do Rio com uma linha ofensiva que
contava com Gerson, Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. Todos da
seleção.
Naqueles tempos gozávamos de
muita liberdade e nas tardes cariocas andávamos por todo lado, desbravando
Copacabana e arredores. Um de meus passeios favoritos era a Lagoa Rodrigo de Freitas.
Havia na Rua Gastão Bahiana, se não me falha a memória, um edifício cujo
elevador tinha uma saída para o corte do Cantagalo. Tomar esse elevador fazia
parte da aventura pois o porteiro estava lá para impedir o acesso a quem não
fosse morador do prédio. Havia que esperar o momento oportuno e entrar de
fininho pelo corredor que levava ao transporte. A volta, por algum motivo que
já não lembro, tinha de ser feita da maneira mais cansativa, subindo por todo o
corte do Cantagalo até atingir Copacabana por seu extremo oeste.
Gostava também de cruzar os
quatro túneis do bairro. O túnel Novo, mais extenso e ruidoso, o túnel Velho
que me parecia sombrio e úmido, o túnel da Rua Toneleros, e o túnel que separa
a Barata Ribeiro da Raul Pompéia, muito mal cheiroso e que eu cruzava diariamente, caminho da escola,
quando morava na Sá Ferreira e depois na própria Raul Pompéia.
A Francisco Sá me levava até
Ipanema, eu gostava da Praça Gal.Osório com seu laguinho com plantas aquáticas.
Naqueles dias tinha aprendido sobre a vitória régia e o laguinho da praça era
quase um igarapé. Esse passeio eu fazia só. Também era difícil encontrar
companhia para o cruzamento de túneis.
As muitas horas passadas nas
ruas não preocupavam muito nossas mães.Pelo menos eu pensava assim. Quando o
bate-pernas se prolongava em demasia uma explicação genérica: _“tava por aí
mesmo” ou uma mentirinha tranqüilizadora:_ “fui na casa do Nick”, aplacavam as
broncas antes mesmo do jantar.
Um dia o Sérgio me chamou para
vermos um treino do Flamengo. Ele, embora estudasse em Copacabana, morava no
Leblon. A estranheza, nesse caso, provém da distância e não do fato de alguém
que morava no bairro elegante estudasse na escola pública. Isso era comum. Muitos
outros colegas moravam bem. O Márcio vivia de frente pro mar na Avenida
Atlântica num prédio de dois apartamentos por andar. Outros eram moradores do
Morro do Cantagalo ou do Morro do Pavão. Muitos deviam ser como eu e habitavam
os inúmeros apartamentos conjugados que existem no bairro famoso.
Nesse tempo eu nunca tinha
dinheiro no bolso a não ser que, pegando carona no ônibus para ir a escola,
economizasse o que minha mãe me dava para a passagem. No dia que fui assistir o
treino do rubro-negro eu só contava com umas moedinhas, assim que fui andando
de Copacabana até o Leblon onde me encontraria com o Sérgio. Daí mais uma
caminhada até a Gávea. Apesar de ser
sócio, meu amigo pulou o muro do clube comigo e caímos num cantinho que
dava acesso ao campo. Nossa presença parecia não incomodar ninguém e ficamos
cada vez mais perto até estar a poucos metros da linha lateral. Murilo passava
por nós como um foguete. Doval treinava apartado fazendo corridas em volta do
campo e nos chamou para correr com ele. Ficamos lado a lado com o Diabo Louro e
quando disparamos, ele voltando-se, correu para o outro lado. Anos depois
voltei a encontrar Doval na praia e fui vítima de outra brincadeira sua.
Quando o treino foi interrompido
fomos para a arquibancada e encontramos Paulo César. O ponta do Botafogo
assistia o treino do rival cercado de crianças e garotas. Na época, isso não
era nenhum problema. Não havia os chatos das torcidas organizadas. Fazendo as
contas me surpreendo com a idade que ele tinha então: 19 anos. Já era um
monstro sagrado.
Escurecia quando deixamos a
Gávea. Sérgio foi para sua casa que ficava distante apenas alguns quarteirões.
A mim cabia a caminhada de volta até a Raul Pompéia em Copacabana. Quando
já estava em Ipanema, lembrei das moedinhas mas constatei que não alcançavam
para um Grapete. Como a água mineral era mais barata, pedi uma no primeiro
botequim que encontrei. O português me serviu uma com gás e experimentei uma das coisas mais asquerosas
que já havia bebido. A sede era muita e ainda faltava um bom pedaço até em casa. Tomei quase toda
a garrafa do líquido esquisito. Quando cheguei escutei a ladainha de sempre e
respondi que “estava por aí mesmo”.
Me deitei cedo aquele dia, cansado pelo
passeio e rindo ainda da brincadeira de Doval. Na minha cabeça, Murilo seguia
passando como um foguete
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