As palavras mudam com o tempo. Ganham outros
significados, perdem sua sedução ou são pronunciadas a cada dez segundos.
Termos que até ontem ignorávamos, hoje escutamos em cada esquina. Outros, que
usávamos com freqüência, somem sem deixar rastros. Com as gírias, neologismos e
outros modismos isso é comum.
Lembro de um fato acontecido no
começo dos 70. Eu ainda não tinha idade para mexer no seletor de canais da televisão
e em minha casa se via o programa do Flávio Cavalcanti.
Se você é coroa deve se lembrar
como era o programa. Se não, deixe que eu explique:_Era uma espécie de bazar
onde havia de tudo. Na mesma noite de domingo podia estar presente o maestro
Isaac Karabtchevsky e um cara que fazia embaixadinhas com um limão. Diante da
orquestra do Maestro Cipó, delegados de polícia faziam campanhas anti-drogas e
logo após vinha um concurso de beleza masculina. Discos eram quebrados no palco
pelo apresentador antes do quadro de calouros. Havia gincanas, propaganda da
ditadura, números circenses e, é claro, um júri. Nessa época, todos os
programas de auditório tinham um júri.
Foi nesse programa que um dia
apareceu Aurélio Buarque de Holanda para lançar seu dicionário. No meio do
palco, em pé, Flávio Cavalcanti entrevistou-o e os jurados fizeram perguntas. A
novidade do léxico do tio do Chico é que introduzia gírias e expressões
populares até então ignoradas nesse tipo de obra. Acho que só por isso mestre
Aurélio estava ali, dividindo o palco com a equipe de salvamento marítimo do
corpo de bombeiros e os cães amestrados do Circo Tihany.
Questionado sobre o valor das
gírias e seu aspecto efêmero, o intelectual ponderou que muitas dessas palavras
tinham mesmo o destino de desaparecer mas outras haviam de ficar e
incorporar-se à língua culta. Entre essas últimas citou a palavra “desbunde” e
o verbo “desbundar” que dela deriva. Falou de sua expressividade, da
abrangência e poder de síntese neles contidos. Hoje sabemos que Aurélio se
equivocou rotundamente. Ninguém mais usa o termo que só é encontrado nas
pornochanchadas produzidas na época e em seu dicionário, até mesmo na versão
eletrônica.
Ao longo do tempo, palavras que
foram largamente usadas deixaram de sê-lo. Umas porque perderam seu poder de
designar coisas ou pensamentos, outras simplesmente pelo cansaço, que seu uso
massivo e repetitivo, provocou.
Na década passada certos termos
foram tão usados e de forma tão insistente que sumiram como por encanto do
vocabulário dos brasileiros. Hoje, nem pra piada servem. Você sabe a que me
refiro. Mas os anos 2000 deixaram marcas na comunicação que parecem
irremovíveis. A principal delas é o uso de palavras, termos, frases inteiras no
idioma inglês. Sei que isso não é tão recente e que alguns de nossos
compatriotas sempre se sentiram confortáveis e superiores quando podiam
enxertar no seu discurso alguma besteira naquela língua. Só que agora está
demais. Já não são apenas os surfistas com seu falso inglês de praia, nem os
que, após uns meses de intercâmbio, ao voltarem, fingiam ter-se esquecido do
idioma de Camões e Dicró. Não. Hoje os comunicadores sociais são seus maiores
cultores. O fenômeno se dá mais na televisão que nos outros meios ainda que
jornais e revistas em seus cadernos de economia, cultura e informática dêem sua
contribuição para a abolição do português brasileiro.
Nas tvs, quando não há texto
escrito a coisa piora. Não que os textos estejam isentos dos anglicismos, mas
no improviso os caras abusam. Ainda a pouco estava vendo um programa esportivo
e o apresentador, um gorducho bobão metido a engraçado, logo após dizer um
termo em português, corrigiu-se imediatamente mandando uma expressão idiomática
tirada do vocabulário jornalístico americano.
Infelizmente professores e
outros “sábios” também aderiram e está ficando difícil seguir uma explanação
sobre qualquer assunto sem dominar o inglês. Mesmo que a fala se dê num
telejornal popular, entrevistados e palpiteiros metem a língua entre os dentes, para não decepcionar na pronúncia, e soltam mais uma palavrinha em inglês para iluminar a escuridão de seu pensamento. Não importa sobre o que se fale; filosofia, música popular,
política. Para nada serve nosso idioma. Todos recorrerem às expressões
americanas e as pronunciam com um sotaque tal, que fica difícil reconhecê-las
quando as encontramos escritas.
O Marquês de Pombal já sabia que
palavra é poder e enquanto enterrava os mortos do terremoto de Lisboa e
expulsava jesuítas de nossas terras, ainda arrumou um tempinho para tornar
obrigatório o ensino do português no Brasil acabando assim com o nheengatu que,
até então, era o que se falava mais por aqui.
Alguns anos atrás o Deputado
Aldo Rebelo do PC do B, apresentou uma proposta de lei para regulamentar o uso
do idioma português do Brasil e coibir os estrangeirismos. A proposta se
embasava em outras leis como o código de defesa do consumidor que obriga que as
informações dadas a quem adquire um produto ou serviço estejam no nosso idioma.
O deputado citava, por exemplo, os anúncios de lançamentos imobiliários
publicados nos jornais. Neles, nenhum dos cômodos do imóvel recebe uma
designação em
português brasileiro. Esses imóveis, geralmente, estão em condomínios com nomes italianos e em suas áreas comuns nenhum de seus moradores corre o risco de
esbarrar com uma tabuleta indicando o local do parque, do campo de futebol ou
do cabeleireiro. Tudo está redigido no idioma oficial do novo rico. Como não se
pode exigir que ninguém fale direito, a proposta do Deputado estava dirigida à
publicidade, principal agente de divulgação de bobagens.
Aldo Rebelo foi ridicularizado e
até ofendido pelos que não abrem mão de trocar expressões de uso cotidiano e
largamente usadas no idioma nacional por outras em inglês. Houve mesmo
quem por ser do antigo partidão, inimigo do PC do B, defendesse que o termo
“entrega em domicílio” devia ser substituída por outro em idioma estrangeiro
por tratar-se de serviço diferente. Atacada por todos os lados e com os mais
ridículos argumentos, a proposta não prosperou e creio que nem chegou às
comissões da Câmara. Foi o mesmo que pregar no deserto. Nesse caso, o deserto
das idéias e do bom senso
O assunto morreu enquanto
crescia o uso de expressões americanas trazidas pela popularização da
informática que, ademais de ter seu próprio glossário, agrega dezenas de
palavras no idioma de seus deuses: Bill Gates, Steve Jobs e Zuckerberg. Como os
grandes grupos de comunicação, maiores difusores do besteirol linguìstico, estão
em guerra contra qualquer tentativa de regulamentação de suas atividades, se
alguém tentasse reeditar a proposta de Rebelo seria logo acusado de censor e sua
opinião tachada de nacionalismo anacrônico ou algo que o valha.
Eu alimento a esperança que esse
falar híbrido vá caindo em desuso tal qual as gírias de minha juventude ou que
as gerações vindouras saibam trata-lo com a ironia devida. Assim como são
tratadas as calças boca de sino e as sandálias de sola de pneu do tempo do
desbunde.
É isso aí, bicho.
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