terça-feira, 8 de maio de 2012

Palavras, nada mais que palavras







 As palavras mudam com o tempo. Ganham outros significados, perdem sua sedução ou são pronunciadas a cada dez segundos. Termos que até ontem ignorávamos, hoje escutamos em cada esquina. Outros, que usávamos com freqüência, somem sem deixar rastros. Com as gírias, neologismos e outros modismos isso é comum.
Lembro de um fato acontecido no começo dos 70. Eu ainda não tinha idade para mexer no seletor de canais da televisão e em minha casa se via o programa do Flávio Cavalcanti.
Se você é coroa deve se lembrar como era o programa. Se não, deixe que eu explique:_Era uma espécie de bazar onde havia de tudo. Na mesma noite de domingo podia estar presente o maestro Isaac Karabtchevsky e um cara que fazia embaixadinhas com um limão. Diante da orquestra do Maestro Cipó, delegados de polícia faziam campanhas anti-drogas e logo após vinha um concurso de beleza masculina. Discos eram quebrados no palco pelo apresentador antes do quadro de calouros. Havia gincanas, propaganda da ditadura, números circenses e, é claro, um júri. Nessa época, todos os programas de auditório tinham um júri.
Foi nesse programa que um dia apareceu Aurélio Buarque de Holanda para lançar seu dicionário. No meio do palco, em pé, Flávio Cavalcanti  entrevistou-o e os jurados fizeram perguntas. A novidade do léxico do tio do Chico é que introduzia gírias e expressões populares até então ignoradas nesse tipo de obra. Acho que só por isso mestre Aurélio estava ali, dividindo o palco com a equipe de salvamento marítimo do corpo de bombeiros e os cães amestrados do Circo Tihany.
Questionado sobre o valor das gírias e seu aspecto efêmero, o intelectual ponderou que muitas dessas palavras tinham mesmo o destino de desaparecer mas outras haviam de ficar e incorporar-se à língua culta. Entre essas últimas citou a palavra “desbunde” e o verbo “desbundar” que dela deriva. Falou de sua expressividade, da abrangência e poder de síntese neles contidos. Hoje sabemos que Aurélio se equivocou rotundamente. Ninguém mais usa o termo que só é encontrado nas pornochanchadas produzidas na época e em seu dicionário, até mesmo na versão eletrônica.
Ao longo do tempo, palavras que foram largamente usadas deixaram de sê-lo. Umas porque perderam seu poder de designar coisas ou pensamentos, outras simplesmente pelo cansaço, que seu uso massivo e repetitivo, provocou. 
Na década passada certos termos foram tão usados e de forma tão insistente que sumiram como por encanto do vocabulário dos brasileiros. Hoje, nem pra piada servem. Você sabe a que me refiro. Mas os anos 2000 deixaram marcas na comunicação que parecem irremovíveis. A principal delas é o uso de palavras, termos, frases inteiras no idioma inglês. Sei que isso não é tão recente e que alguns de nossos compatriotas sempre se sentiram confortáveis e superiores quando podiam enxertar no seu discurso alguma besteira naquela língua. Só que agora está demais. Já não são apenas os surfistas com seu falso inglês de praia, nem os que, após uns meses de intercâmbio, ao voltarem, fingiam ter-se esquecido do idioma de Camões e Dicró. Não. Hoje os comunicadores sociais são seus maiores cultores. O fenômeno se dá mais na televisão que nos outros meios ainda que jornais e revistas em seus cadernos de economia, cultura e informática dêem sua contribuição para a abolição do português brasileiro.
Nas tvs, quando não há texto escrito a coisa piora. Não que os textos estejam isentos dos anglicismos, mas no improviso os caras abusam. Ainda a pouco estava vendo um programa esportivo e o apresentador, um gorducho bobão metido a engraçado, logo após dizer um termo em português, corrigiu-se imediatamente mandando uma expressão idiomática tirada do vocabulário jornalístico americano.
Infelizmente professores e outros “sábios” também aderiram e está ficando difícil seguir uma explanação sobre qualquer assunto sem dominar o inglês. Mesmo que a fala se dê num telejornal popular, entrevistados e palpiteiros metem a língua entre os dentes, para não decepcionar na pronúncia, e soltam mais uma palavrinha em inglês para iluminar a escuridão de seu pensamento. Não importa sobre o que se fale; filosofia, música popular, política. Para nada serve nosso idioma. Todos recorrerem às expressões americanas e as pronunciam com um sotaque tal, que fica difícil reconhecê-las quando as encontramos escritas.
O Marquês de Pombal já sabia que palavra é poder e enquanto enterrava os mortos do terremoto de Lisboa e expulsava jesuítas de nossas terras, ainda arrumou um tempinho para tornar obrigatório o ensino do português no Brasil acabando assim com o nheengatu que, até então, era o que se falava mais por aqui.
Alguns anos atrás o Deputado Aldo Rebelo do PC do B, apresentou uma proposta de lei para regulamentar o uso do idioma português do Brasil e coibir os estrangeirismos. A proposta se embasava em outras leis como o código de defesa do consumidor que obriga que as informações dadas a quem adquire um produto ou serviço estejam no nosso idioma. O deputado citava, por exemplo, os anúncios de lançamentos imobiliários publicados nos jornais. Neles, nenhum dos cômodos do imóvel recebe uma designação em português brasileiro. Esses imóveis, geralmente, estão em condomínios com nomes italianos e em suas áreas comuns nenhum de seus moradores corre o risco de esbarrar com uma tabuleta indicando o local do parque, do campo de futebol ou do cabeleireiro. Tudo está redigido no idioma oficial do novo rico. Como não se pode exigir que ninguém fale direito, a proposta do Deputado estava dirigida à publicidade, principal agente de divulgação de bobagens.
Aldo Rebelo foi ridicularizado e até ofendido pelos que não abrem mão de trocar expressões de uso cotidiano e largamente usadas no idioma nacional por outras em inglês. Houve mesmo quem por ser do antigo partidão, inimigo do PC do B, defendesse que o termo “entrega em domicílio” devia ser substituída por outro em idioma estrangeiro por tratar-se de serviço diferente. Atacada por todos os lados e com os mais ridículos argumentos, a proposta não prosperou e creio que nem chegou às comissões da Câmara. Foi o mesmo que pregar no deserto. Nesse caso, o deserto das idéias e do bom senso
O assunto morreu enquanto crescia o uso de expressões americanas trazidas pela popularização da informática que, ademais de ter seu próprio glossário, agrega dezenas de palavras no idioma de seus deuses: Bill Gates, Steve Jobs e Zuckerberg. Como os grandes grupos de comunicação, maiores difusores do besteirol linguìstico, estão em guerra contra qualquer tentativa de regulamentação de suas atividades, se alguém tentasse reeditar a proposta de Rebelo seria logo acusado de censor e sua opinião tachada de nacionalismo anacrônico ou algo que o valha.
Eu alimento a esperança que esse falar híbrido vá caindo em desuso tal qual as gírias de minha juventude ou que as gerações vindouras saibam trata-lo com a ironia devida. Assim como são tratadas as calças boca de sino e as sandálias de sola de pneu do tempo do desbunde.
É isso aí, bicho.









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