sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Biografias são imorais


Há muito que passei dos 50 e as coisas já não são as mesmas. Depois dessa idade-marco, dessa idade-limite, começa a falhar o que era nossa fonte de orgulho e de satisfação. Nossa única maneira de prolongar a juventude. Refiro-me à memória, é claro, amiga licenciosa e debochada. O baú da cachola, já cheio de inutilidades mais contemporâneas, vai aos poucos escondendo certos tesouros no seu fundo.
 Quer um exemplo? Não sei se gosto de biografias, pois não recordo se li muitas ou poucas. Nesse dia nublado de minha consciência, só me lembro de ter lido a biografia do Garrincha escrita por Rui Castro. De outros personagens posso ter lido pequenos artigos biográficos ou ter visto documentários. Realmente não lembro. Os retalhos de vidas alheias estão lá, no fundo daquele baú sob toneladas de outras memórias inúteis.
Sei sim que gosto de autobiografias. Desde a obra gigantesca de Nava, que conheci ainda jovem, passei a amar o gênero. O “Confieso que he vivido” de Neruda também me tocou, embora me pareça obra pouco cuidada. Acho que quando li as memórias do poeta  chileno, me passou pela cabeça que faltava poesia no relato. É muita pretensão, eu sei, mas creio que foi isso o que pensei na época, se a memória das sensações não me falha.
Talvez a autobiografia que mais se enquadra naquela definição de que toda autobiografia é uma obra de ficção, seja a de Luis Buñel. Gostei do tom que o cineasta usou para relatar sua vida e seu ofício. Realmente tem muito de ficção, mas pelo menos é ficção criada pelo dono da vida, pelo protagonista da estória, pois afinal uma biografia escrita por outrem, autorizada ou não, também transita pelo terreno ficcional. Biografias são, penso eu, obras de amor ou ódio, nada menos. Ama-se ou odeia-se adornando de invencionice o objeto desses sentimentos. A imparcialidade é vedada ao ser humano. Na melhor das hipóteses sempre haverá a simpatia e seu antagônico.
Como você já notou, estou voltando ao assunto das biografias não autorizadas.
Pois é, enfim cheguei a uma conclusão sobre o tema. Deixei de pensar nos aspectos jurídicos, filosóficos e outros que tais. Deixei de levar em conta a campanha injuriosa que os defensores da liberdade de imiscuir-se na vida alheia perpetraram. Deixei pra lá o cotejar das idéias dos outros. Deixei de sopesar argumentos prenhes de citações eruditas. Resolvi consultar o único oráculo que me tem sido fiel em todos os erros: meus botões.
Foi depois dessa consulta que conclui que escrever biografias é imoral. Sob todos os aspectos é imoral. Seja exercendo a arte da louvaminha e do panegírico ou buscando nas fraquezas humanas o mote para o texto, biografar é imoral, é antiético, é, muitas vezes, desumano. Expor a intimidade de alguém que não deseja ver suas  vicissitudes dadas ao julgamento público, é um desrespeito, um atentado à dignidade humana.

Biografia é a fofoca com título de bacharel, é o fuxico que recebe subvenção estatal, é a maledicência que quer entrar na academia. Biografando, se enaltece o canalha amigo tão facilmente quanto se execra o desafeto. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário