quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Racismo e abolicionismo



                Após uma temporada de boas leituras, estou lendo agora dois livros muito ruins. Ou melhor, dois livros que não estão me agradando. Dito assim fica melhor. Afinal quem disse que sou crítico literário para afirmar que tal ou qual obra é boa ou ruim?
                Um dos livros se chama Enigma para atores. Seu autor, Patrick Quentin. Trata-se de um romance de suspense.  Comecei a lê-lo por dois motivos: primeiro porque é de papel, portátil, e eu precisava de algo para ler no corredor do posto de saúde enquanto aguardava  consultas. Segundo porque é de uma coleção criada por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares.  Deixei-me levar. Sei que Borges é um admirador confesso do gênero suspense. Confiei no seu critério. Mas como disse o poeta: cu e gosto, cada um tem um.
                 Se o livro não me agrada, por que continuo lendo? Você certamente perguntará. Acontece que para mim é muito difícil abandonar livros pela metade. Não que eu me iluda pensando que algo que comece pessimamente vá terminar bem. Não. É apenas uma fraqueza de meu caráter. Nunca fui bom de abandonos. Nem de livros, nem de mulheres. Assim que vou lendo a insulsa trama já sabendo, mesmo antes de chegar à metade do volume, quem é o culpado.
                O outro livro que me tem refém de seu previsível desfecho é “A carne” de Júlio Ribeiro.
                O autor é um dos representantes do naturalismo no Brasil. Até bem pouco tempo, o único escritor desta corrente literária que eu havia lido, era Aluísio Azevedo e lendo agora a obra de Júlio Ribeiro, me dou conta do motivo de minha ignorância. Simplesmente o autor e sua obra não passaram pelo filtro do tempo. Já Aluísio Azevedo, perpetuou-se em seguidas reedições de seus livros e o mais popular deles, “O cortiço”, ganhou versão cinematográfica. Por isso Azevedo chegara a mim e Júlio Ribeiro, não.
                “A carne” está dedicado a Émile Zola, que o autor chama de príncipe do Naturalismo. A dedicatória, que na versão impressa está em francês, é de uma subserviência cultural sem limites. Cafona e piegas.  
                Embora o autor faça grande alarde da influência que o escritor francês teve sobre sua concepção literária, a personagem principal de “A carne” pouco tem de naturalista. É, antes, uma típica heroína do romantismo, do pior do romantismo. Exceto por uma coisa: o tesão.
                A moça, que aos 22 anos é cabaçudíssima, já nos primeiros capítulos está tecendo fantasias sexuais, até com uma estatueta de bronze. (Não do jeito que você está pensando, degenerada amiga).
                Isto se passa na fazenda onde ela se hospedou depois da morte do pai. Ela, que vivia apenas para as artes e as ciências, agora se descobre tesuda e só. Aqui o autor nos diz o que para a heroína era sentir desejos carnais; “cair de repente, como os arcanjos de Milton, do alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da CARNE, espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer... era a suprema humilhação”.  E olha que a moça era a fina flor da sabedoria científica!
                Bem, era aqui que eu queria chegar. Esqueça o que vai acima e me desculpe pela inépcia da expressão.  Vamos ao que interessa.
                Num outro trecho do romance, a heroína tem um encontro com um escravo de seu protetor. O diálogo entre eles é o que segue:  
                _"Sinhá, olhe como está essa perna: está toda ferida. Ferro pesa muito, fale com o sinhô pra tirar.
E mostrava o tornozelo ulcerado pela pega, fétido, envolto em trapos muito sujos.
                _Mas o que você fez para estar sofrendo isso?
                _Pecado, Sinhá, fugi.
                _Era maltratado, estava com medo de apanhar?
                _Nada, Sinhá: negro é mesmo bicho ruim, às vezes perde a cabeça”.
               O diálogo, totalmente inverossímil, foi escrito por um abolicionista. Sim, Júlio Ribeiro era abolicionista.  Assim como outros de sua geração e condição social, Júlio Ribeiro militou na causa da libertação dos escravos. Nem por isso deixava de ser racista, como mostra o diálogo acima. Muitos dos que se engajaram na luta antiescravista, não o fizeram por crer na igualdade entre os seres humanos, mas por outros motivos.É comum encontrarmos escritos do século 19, nos quais seus autores se lamentam pela imagem do Brasil na Europa, devido à escravidão. Alguns apontam para as relações econômicas prejudicadas pelo trabalho escravo. Outros aludem ao amor cristão para condenar a exploração dos escravos. De igualdade e justiça pouco se fala.
               Não nos esqueçamos que Júlio Ribeiro pertencia à nata da intelectualidade nacional sendo, inclusive, membro da Academia Brasileira de Letras. 
                Joaquim Nabuco, outro ilustre antiescravista, em seu livro “O abolicionismo”, nos dá uma amostra do pensamento vigente entre alguns dos que defendiam a causa da libertação dos escravos: ”Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras.” Nabuco, fundador da Sociedade Antiescravidão Brasileira, foi também um dos fundadores da ABL.
                José Veríssimo, outro acadêmico, fala nesses termos da questão racial: “A mistura de raça é facilitada pela prevalência do elemento superior. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já começa a ocorrer.”
                Esse modo de pensar não ficou acumulando poeira como a obra de Júlio Ribeiro. Está vivo. Para comprovar isso, basta que leiamos o que se tem escrito sobre o sistema de cotas nas universidades. Houve quem afirmasse que a simples presença dos cotistas (negros e mulatos), faria cair o nível do ensino superior no Brasil. Esse mesmo ensino superior que produziu Júlio Ribeiro, Nabuco e José Veríssimo.





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