sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Maldade


                Meus problemas com a escola nunca foram de aprendizagem ou relacionamento. Eu sempre adorei a escola; a camaradagem dos colegas, o carinho da grande maioria dos professores, enfim, minha curta vida escolar sempre me pareceu uma festa. Minhas notas eram boas, um deslize aqui outro ali, nada de mais.
                Meus problemas com a escola foram sempre de ordem burocrática. Eu nasci em agosto e tive que entrar no 1º ano do primário com os 7 anos já feitos. Se tivesse nascido 3 dias antes, em 31 de julho, poderia ter sido matriculado um ano antes. Hoje, isso se chama data de corte. No meu tempo de menino devia ter outro nome, mas o espírito burocrático é o mesmo.
                Outra coisa que me atrapalhou, foi o vezo de minha família que vivia se mudando de Minas para o Rio e do Rio para Minas. Assim que, tendo concluído o 2º ano primário No Grupo Escolar Bernardo Monteiro, em Belo Horizonte, e ter sido aprovado com um boletim cheio de notas 10 e 9, fomos morar no Rio.
                Nessa época, a Secretaria de Educação do Estado da Guanabara havia mudado a nomenclatura dos cursos e o sistema de avaliação. Já não existia mais o 1°, 2º, 3°... anos e sim o “Nível A, B,C, etc.  Acontece que o “Nível A” correspondia ao pré-primário, o “Nível B” ao 1°ano e assim por diante. Sem as informações necessárias, minha mãe matriculou-me no “Nível 3” da Escola Pública Dr. Cócio Barcelos, em Copacabana, causando-me a perda de mais um ano. Isso também é comum até hoje, e todas as reformas que são feitas na educação são dessa natureza; mudam-se os nomes das coisas que estão erradas, não as coisas em si.
                 Eu tinha também outro defeito além do de ter nascido uns dias atrasado: eu sempre fui alto, o que me fazia ser o maior da turma ou o segundo maior.  Pois bem.
                Num desses dias felizes em que freqüentava o “Nível 3”, Dona Márcia, a professora, faltou. Alguém entrou na sala e nos dividiu em duplas e fomos encaixados em outras turmas. Para meu desgosto, não me colocaram em dupla com o Sérgio Franco Flores nem com o Ricardo, tampouco com o Rogério, meus parceiros de futebol de botão e discussão futebolística. Acho que seguiram um critério de altura e lá fui eu com o único garoto que era mais alto que eu naquela turma, para assistir uma aula em sei lá que outro “Nível”.
                Engraçado é que não me lembro desse garoto como meu confrade, meu colega do dia-a-dia. Dele, só me lembro desse episódio. Sem embargo, sua fisionomia, seu jeito de andar, sua voz, me vêm à mente de forma tão clara como se tivéssemos nos visto ontem.
                Ele não só era o mais alto da turma como também o mais velho. Devia estar 3 ou 4 anos atrasado, talvez por motivos parecidos como os meus. Era um gigante gentil com suas calças curtas, seu cabelo claro partido de lado que escorria de um lado da testa, seu andar de tímido. O fato de não lembrar-me dele, a não ser por esse caso, deu-se, creio, por isso: ele era um gigante gentil e tímido.
                Puseram-nos no fundo de uma classe e lá ficamos esperando que o tempo passasse. Num dado momento ele me sussurrou algo e, tentando ser discreto, mostrou-me um canivete que trazia. Era um pequeno canivete, um objeto de desejo para um menino daqueles tempos. Não só pelo proibido, mas por ser algo distante de nossos bolsos. Ademais, sua posse conferia grande prestígio ao dono.  Mas esse prestígio estava restrito ao mundo masculino e uma garota nos flagrou na inspeção do pequeno artefato e prontamente se levantou para praticar a mais vil das atitudes humanas: a delação.
                Tal prática seria impensável entre os meninos. Um dedo-duro era visto como o pior dos insetos, o mais abominável dos seres rastejantes, o mais patife entre os patifes. Enfim, um puxa-saco da professora. Mas as meninas estavam fora desse sentido ético que compartilhávamos e adoravam ser puxa-saco das professoras.
                Dessa garota que nos entregou, não guardo nem a mais remota lembrança, mas quero imaginá-la de tranças. Daquelas tranças das quais não escapa nem um fiozinho. Gosto de imaginá-la com o cós de sua saia plissada acima do umbigo, dando-lhe um ar de palhaça e com o elástico das meias ¾ deixando-lhe uma marca vermelha nas pernas gordas.
                Delatado, o Gigante Gentil foi chamado pela professora. Caminhou com seu passo de tímido entre as carteiras, sob o olhar do bando de pascácios daquela turma.
Não lembro o que ele falou para se defender, mas lembro que fiquei impressionado com sua desenvoltura e humildade diante daquela professora estranha. Fora eu o chamado, e estaria vermelho de timidez e pavor, balbuciando qualquer coisa. Mas ele saíra incólume da inquisição e creio que a mestra lhe permitiu permanecer de posse do canivete desde que o mantivesse guardado.
                Ainda hoje o vejo voltando para a carteira que compartilhávamos com seu longo rosto de gigante gentil.  Já não me importavam os olhares que os pascácios nos dirigiam, pelo contrário. Sentia-me bem por ser amigo do Gigante Gentil que era dono de um canivete. Continuamos ali sentados até a hora da merenda.
                A escola tinha um refeitório que servia a cada dia algo diferente. Diferente, mas repetido da 1ª à última semana do ano letivo. Eu, e creio que todo mundo, preferia o dia do chocolate quente com biscoito. Tinha outra coisa que eu também gostava, mas não há maneira de lembrar. O dia da sopa era passável e o do arroz doce também. Mas na sexta feira tinha o arroz com peixe. Horas antes da merenda, toda a escola era inundada pelo cheiro forte do peixe cozido.  Eu não só odiava o cheiro do peixe como também não suportava  a visão daquele arroz todo grudado, um legítimo unidos venceremos.
                Claro que não me lembro se no dia dos fatos que estou narrando o prato era o fatídico arroz com peixe.  Minha memória quer que sim, mas não passa recibo.
                O que sim me lembro, foi que ao transpormos a porta que dava para esse refeitório, o Gigante Gentil e eu passamos por duas professoras, uma delas a que nos tocara naquele dia. Falavam de nós, certamente comentando o caso do canivete. Quando estávamos no ponto mais próximo a elas pudemos ouvir claramente (pois falavam para que escutássemos) o que uma delas dizia: _E desse tamanho no “Nível 3”. Sua voz tinha um desprezo e uma condenação inéditos para mim. Mas, verdade seja dita, tinha na ponta da língua a terminologia burocrática.
                Posso garantir que aquele desprezo, aquela condenação estava dirigida não só ao Gigante Gentil como a mim também. Era uma frase para nos rebaixar ao reino dos imbecis, e dita em voz alta, para que nos inteirássemos e não restassem dúvidas sobre nossa condição de retardados.  Nada comentei com o Gigante Gentil que também nada comentou. Cada um carregou consigo o peso daqueles segundos.
                Não posso dizer que desse dia em diante tenha passado a me preocupar com o fato de ser mais velho ou mais alto que a maioria de meus companheiros. Pouco depois disso escutei coisas piores e também tive de tragar sem opor argumentos em minha defesa.
                Esqueci, se é que alguma vez lembrei, do rosto daquelas professaras. Agora, tentando reconstruir o episódio, as deixo sem cabeças e meto-lhes discretas mini-saias cinzentas de tergal para combinar com suas blusas Ban lon cor de creme. São manequins que visto às pressas por uma espécie de pudor.
                Nunca havia contado isso para ninguém. Acho que por vergonha. Vergonha da maldade alheia.






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