segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Um lance do Rei


                Às vezes me pego pensando se eu realmente teria visto aquilo ou, traído pela memória, estaria dando como vistas coisas ouvidas, contadas por quem  realmente as presenciou. Mas não. Eu vi, sentado naquele sofá cor de mostarda que já mostrava suas entranhas de espuma, numa TV Telefunken , a maior seleção que o mundo viu jogar. 
                Sim, eu vi Pelé, Tostão, Gerson e o Furacão. Eu vi O Capitão, o Corró, Rivelino. Eu vi Everaldo, Piazza, Brito, Félix.  Eu vi o Brasil levantar a Jules Rimet e apossar-se dela para sempre. Eu vi lances geniais daquele time de craques. Mas um deles eu guardo com mais carinho na lembrança, pois é, talvez, o mais representativo do futebol brasileiro em todos os tempos. Num só lance, todas as qualidades de nossos craques.
                Foi no segundo jogo. Enfrentávamos os ingleses, os campeões de 66, que haviam ido para o México defender seu título.  Ainda agora os vejo com suas camisas brancas impecáveis de corte. Sua arrogância congênita. Seu jogo pesado que na Copa da Inglaterra ficou conhecido como futebol força. Foi um jogo duro.
                Já no primeiro tempo, Gordon Banks fez uma defesa, numa cabeçada de Pelé, que entrou para a antologia dos milagres de goleiros. No mais, um jogo que valia como final antecipada daquele mundial. Pelo menos pra nós.
                O segundo tempo transcorria como o primeiro, com ataques perigosos de ambas as equipes até que uma bola alcançou Tostão pela esquerda. O Mineirinho de Ouro costurou dois adversários e quando um terceiro veio na cobertura, o craque do Cruzeiro deve ter se lembrado do futebol força que os idiotas da objetividade de nossa crônica esportiva, exaltavam desde nosso fracasso em 66.  Para aqueles técnicos de redação, o futebol brasileiro estaria sepultado, pois não sabia praticar o futebol força que era a nova realidade para todo o sempre.  Pois bem. Quando aquele inglês veio cobrir sua lateral direita, Tostão soltou-lhe o antebraço na cara. Soltou mesmo, com força. O praticante do futebol força, o súdito da rainha, o anglicano, estava fora da jogada, levava as mãos ao rosto atingido pelo braço de Tostão.
                Mas o craque brasileiro ficara de costas para a área, entre a linha de lado e a linha lateral da grande área e fazendo o que Waldir Amaral chamaria de um corrupio, cruzou a bola praticamente sem ver. O cruzamento saiu duplamente perfeito. Primeiro, porque caiu nos pés de um companheiro e depois porque esse companheiro era Pelé.
                Dentro da grande área, o Rei fez o domínio, o corpo arqueado à frente, todos os músculos prontos para responder ao lume, à espoleta de seu raciocínio. Fico imaginando o que teria passado na cabeça daqueles gringos que marcavam Pelé, naquele segundo em que Ele dominou aquela bola. Sim, pois de seus pés poderia vir qualquer coisa. Pelé podia fazer qualquer coisa. Se quisesse, recuaria de calcanhar para o Félix na outra área. Se lhe apetecesse poderia ter mandado parar o jogo e fazer uma declaração pela paz universal. Se preferisse, poderia exigir uns mariachis e cantar Cielito lindo. Pelé podia tudo. Todos sabíamos disso e prendemos a respiração. Os marcadores ingleses também. Só Pelé mantinha seu fôlego inalterado, sereno.  O que faria Pelé?  Perguntavam-se os zagueiros, a rainha e o primeiro ministro. Aquele pentelhésimo de segundo de perplexidade inglesa diante do fenômeno negro brasileiro, foi fatal.
                Do alto de seus 29 anos, de sua exuberância física e técnica, o Rei elegeu a simplicidade, optou pelo singelo.  Viu Jairzinho penetrando pela direita e num toque isento de qualquer afetação, botou o Furacão na cara do gol. Jair, que viria a marcar em todos os jogos daquela Copa, poderia ter batido de primeira, mas deu ainda um toque para acomodar melhor a pelota e cravou o chute perfeito. Gol do Brasil.
                O 1 X 0 foi o placar final daquele jogo, que hoje, muitos que o viram, dizem que qualquer das duas seleções poderia ter vencido. Enganam-se. Só o Brasil poderia ter vencido aquela partida, pois só o Brasil tinha Pelé, Tostão e Jairzinho. Mas, sobretudo, porque só o Brasil tinha Pelé.  O maior jogador de futebol de todos os tempos.
                Ainda na Copa de 70, Pelé protagonizou vários lances geniais. Marcou gols, deu passes precisos, driblou, fez o diabo. Até os gols que não fez, foram espetaculares. Sem contar que um ano antes havia atingido a marca estratosférica de 1000 gols. Mas se fosse só por aquele lance contra a Inglaterra em terras aztecas, sua realeza no futebol já estaria garantida.
                Quando terminou sua carreira, jogando nos EE.UU, Pelé possuía um rosário de títulos e glórias e foi, sem dúvida, o maior divulgador do nome de nosso país.
                Neste 23 de outubro, Édson Arantes do Nascimento completa 72 anos de vida. Desde que parou de jogar, há quase 40 anos, não passa um ano em que Pelé esteja nos meios de comunicação fazendo propaganda de algum produto. Sua chancela representa credibilidade.  Fora de nossas fronteiras, o nome de Pelé se confunde com o do Brasil. Aqui, crianças que poderiam ser seus bisnetos, tataranetos, correm para abraçá-lo, para tocá-lo com a mesma emoção dos que o viram, menino, chorar no ombro de Gilmar naquele longínquo 1958.
                Viva o Rei. Feliz aniversário, Pelé.


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