Às vezes me pego pensando se eu realmente teria visto aquilo
ou, traído pela memória, estaria dando como vistas coisas ouvidas, contadas por quem realmente as presenciou. Mas não. Eu vi,
sentado naquele sofá cor de mostarda que já mostrava suas entranhas de espuma,
numa TV Telefunken , a maior seleção que o mundo viu jogar.
Sim, eu vi Pelé, Tostão, Gerson e o Furacão. Eu vi O
Capitão, o Corró, Rivelino. Eu vi Everaldo, Piazza, Brito, Félix. Eu vi o Brasil levantar a Jules Rimet e
apossar-se dela para sempre. Eu vi lances geniais daquele time de craques. Mas um deles
eu guardo com mais carinho na lembrança, pois é, talvez, o mais representativo do
futebol brasileiro em todos os tempos. Num só lance, todas as qualidades de
nossos craques.
Foi no segundo jogo. Enfrentávamos os ingleses, os campeões
de 66, que haviam ido para o México defender seu título.
Ainda agora os vejo com suas camisas brancas impecáveis de corte. Sua
arrogância congênita. Seu jogo pesado que na Copa da Inglaterra ficou conhecido
como futebol força. Foi um jogo duro.
Já no primeiro tempo, Gordon Banks fez uma defesa, numa
cabeçada de Pelé, que entrou para a antologia dos milagres de goleiros. No mais,
um jogo que valia como final antecipada daquele mundial. Pelo menos pra nós.
O segundo tempo transcorria como o primeiro, com ataques perigosos
de ambas as equipes até que uma bola alcançou Tostão pela esquerda. O
Mineirinho de Ouro costurou dois adversários e quando um terceiro veio na
cobertura, o craque do Cruzeiro deve ter se lembrado do futebol força que os
idiotas da objetividade de nossa crônica esportiva, exaltavam desde nosso
fracasso em 66. Para aqueles técnicos de
redação, o futebol brasileiro estaria sepultado, pois não sabia praticar o
futebol força que era a nova realidade para todo o sempre. Pois bem. Quando aquele inglês veio cobrir sua
lateral direita, Tostão soltou-lhe o antebraço na cara. Soltou mesmo, com
força. O praticante do futebol força, o súdito da rainha, o anglicano, estava
fora da jogada, levava as mãos ao rosto atingido pelo braço de Tostão.
Mas o craque brasileiro ficara de costas para a área, entre
a linha de lado e a linha lateral da grande área e fazendo o que Waldir Amaral
chamaria de um corrupio, cruzou a bola praticamente sem ver. O cruzamento saiu
duplamente perfeito. Primeiro, porque caiu nos pés de um companheiro e depois
porque esse companheiro era Pelé.
Dentro da grande área, o Rei fez o domínio, o corpo
arqueado à frente, todos os músculos prontos para responder ao lume, à espoleta
de seu raciocínio. Fico imaginando o que teria passado na cabeça daqueles
gringos que marcavam Pelé, naquele segundo em que Ele dominou aquela bola. Sim,
pois de seus pés poderia vir qualquer coisa. Pelé podia fazer qualquer coisa.
Se quisesse, recuaria de calcanhar para o Félix na outra área. Se lhe
apetecesse poderia ter mandado parar o jogo e fazer uma declaração pela paz
universal. Se preferisse, poderia exigir uns mariachis e cantar Cielito lindo.
Pelé podia tudo. Todos sabíamos disso e prendemos a respiração. Os marcadores
ingleses também. Só Pelé mantinha seu fôlego inalterado, sereno. O que faria Pelé? Perguntavam-se os zagueiros, a rainha e o
primeiro ministro. Aquele pentelhésimo de segundo de perplexidade inglesa
diante do fenômeno negro brasileiro, foi fatal.
Do alto de seus 29 anos, de sua exuberância física e
técnica, o Rei elegeu a simplicidade, optou pelo singelo. Viu Jairzinho penetrando pela direita e num
toque isento de qualquer afetação, botou o Furacão na cara do gol. Jair, que
viria a marcar em todos os jogos daquela Copa, poderia ter batido de primeira,
mas deu ainda um toque para acomodar melhor a pelota e cravou o chute perfeito.
Gol do Brasil.
O 1 X 0 foi o placar final daquele jogo, que hoje, muitos
que o viram, dizem que qualquer das duas seleções poderia ter vencido. Enganam-se.
Só o Brasil poderia ter vencido aquela partida, pois só o Brasil tinha Pelé,
Tostão e Jairzinho. Mas, sobretudo, porque só o Brasil tinha Pelé. O maior jogador de futebol de todos os
tempos.
Ainda na Copa de 70, Pelé protagonizou vários lances geniais. Marcou
gols, deu passes precisos, driblou, fez o diabo. Até os gols que não fez, foram
espetaculares. Sem contar que um ano antes havia atingido a marca
estratosférica de 1000 gols. Mas se fosse só por aquele lance contra a
Inglaterra em terras aztecas, sua realeza no futebol já estaria garantida.
Quando terminou sua carreira, jogando nos EE.UU, Pelé possuía
um rosário de títulos e glórias e foi, sem dúvida, o maior divulgador do nome
de nosso país.
Neste 23 de outubro, Édson Arantes do Nascimento completa 72
anos de vida. Desde que parou de jogar, há quase 40 anos, não passa um ano em
que Pelé esteja nos meios de comunicação fazendo propaganda de algum
produto. Sua chancela representa credibilidade.
Fora de nossas fronteiras, o nome de Pelé se confunde com o do Brasil. Aqui,
crianças que poderiam ser seus bisnetos, tataranetos, correm para abraçá-lo,
para tocá-lo com a mesma emoção dos que o viram, menino, chorar no ombro de
Gilmar naquele longínquo 1958.
Viva o Rei. Feliz aniversário, Pelé.
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