quarta-feira, 5 de junho de 2013

Bons tempos


                Eu era adolescente e havia acordado com uma tremenda ressaca de cachaça barata e otras cositas más. E o pior: não acordei por modo próprio senão pelo vozerio que vinha da sala, separada de meu quarto apenas por uma porta de vidro que ficara entreaberta. 
                Meti a cara para fora para ver quem minha mãe estava recebendo naquele domingo de manhã. E lá estavam sentados, muito tesos no sofá, dois caras falando com forte sotaque gringo. Eram mórmons e estavam trajados com seus uniformes de mórmons: camisas brancas de mangas curtas e gravata. Sobre os joelhos tinham pastas das quais sacavam papéis, folhetos, livros, bíblias e o escambau.
                Minha mãe, faladeira que só ela, dava trela aos santos dos últimos dias. Aquilo durou um bom tempo.
                O fato de ser incomodado por falastrões religiosos, que hoje vemos como banal e corriqueiro, não o era naqueles tempos. Só um chato profissional perturbaria uma família numa manhã de domingo. E aqueles caras eram.Talvez por serem gringos, os mórmons que encontrei na sala desconhecessem as normas da nossa sociabilidade ou, quem sabe, se deixavam levar pela urgência de converter almas. Os religiosos militantes são assim. No seu afã de arrebanhar seguidores, desrespeitam qualquer convenção, qualquer conveniência. Crêem que sua pregação é mais importante que o descanso e a ressaca alheios.
                Só muitos anos depois é que tive contato novamente com um cara que, à sua maneira, estava envolvido com os mórmons. Das outras seitas oriundas do protestantismo eu mal ouvira falar até o final do século passado. Assim como quase todo mundo, eu os designava por crentes. O nome genérico e usual, mostra como eram desconhecidos os pentecostais e neo pentecostais que já andavam fazendo seu proselitismo por aqui há muito tempo.
                Hoje, essas seitas são enormes em templos, seguidores e, principalmente, em grana. Se antes associávamos seus membros às camadas mais pobres e menos instruídas da população, nas últimas décadas isso vem mudando. Atraída pela teologia da prosperidade, a classe média tem sido cooptada para alimentar as polpudas contas bancárias dos pastores e bispos de araque. Mas ainda é o povo pobre, camada mais numerosa da população, a vítima preferencial da extorsão dos dízimos, ofertas e sacrifícios.
                O número de templos das seitas pentecostais e neo pentecostais multiplica-se com uma velocidade estonteante e encontramos evangelizadores, obreiros e missionários até na sopa.
                Nas TVs, onde tinham entrada nas madrugadas e nas primeiras horas da manhã, ocupam agora o horário nobre de várias emissoras. Estão em todas as esquinas, nos trens, ônibus, presídios e num espaço onde sua presença deveria, em nome do bom senso e da ética, ser vedada: a escola pública.
                Ainda assim fazem-se de mártires da fé. O cristianismo, religião fundada no martírio, faz disso galardão. Queixam-se os pentecostais de serem perseguidos. Falam em liberdade de expressão enquanto querem calar minorias chamando-as de abominação. Falam de liberdade religiosa enquanto agridem de forma brutal (até fisicamente) as religiões de matriz africana que rotulam de culto demoníaco.
Ocupam mais de oitenta cadeiras no Congresso de onde procuram legislar em causa própria e contra qualquer avanço da sociedade, E queixam-se de perseguição. Qualquer um que levante a voz para criticar suas posturas medievais é chamado de intolerante. Para todo questionamento seu argumento é o livro mágico, não importando que para muitos o que ali vai escrito não passe de um amontoado de superstições e histórias inverossímeis.
                Parece que nada pode detê-los em sua busca pelo poder financeiro e político.

                Comecei falando de remotos tempos por ter sido tocado por uma certa nostalgia de uma época em que a maioria das pessoas se dizia católica não praticante e ninguém discutia religião.

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