segunda-feira, 11 de junho de 2012

Bandidos







Em seu livro, Viventes das Alagoas, Graciliano Ramos dedica 7 dos 39 textos ao Cangaço. Em um deles, intitulado “Dois cangaços”, o escritor compara os primeiros cangaceiros com Lampião e sua gente. A comparação, ainda que sem enfeitar demasiado os primitivos, deixa o Capitão Virgulino Ferreira em posição desvantajosa. Em feitos, em honra e mesmo em coragem. Acentua Graciliano o tamanho dos bandos que de poucos homens ou apenas envolvendo pessoas da mesma  família em fins do século 19 e começo do século 20, passou a enormes colunas chegando, segundo ele, a duzentos combatentes na invasão de Mossoró em 1927 (Graciliano data o episódio em 1926).
Em um momento da narrativa o autor de Vidas secas, que chegou a pertencer ao Partido Comunista, usa o termo “rebotalho social”, para referir-se a Lampião e seus cabras. Quando fala das moças defloradas pelos cangaceiros, se compadece das brancas que “inutilizam-se para sempre” pois “nenhum sertanejo de família vai ligar-se a uma pessoa ultrajada” ao contrário das moças da classe baixa que, segundo ele, não se aviltam por isso e recebem frascos de perfume, cortes de seda e cordões de ouro e casam-se como se nada houvesse acontecido.
Os crimes cometidos pelo bando de Lampião são destacados do contexto social do sertão. Temos a impressão, lendo o relato, que os cangaceiros inventaram a degola, o estupro, a castração, a mutilação. Essas práticas eram comuns e ainda são embora não cause indignação quando são perpetradas contra a população pobre, seja do sertão seja da favela.
Graciliano faz um relato estribado na sua condição de homem da classe média que se sente mais próximo ao proprietário, ao senhor. Embora condene a situação de penúria do povo trabalhador e veja nesse fato a origem do cangaço de seu tempo que ele distingue do cangaço de “origem social” de tempos atrás, não pondera que a atuação desses homens é apenas reflexo do entorno. Atos como os cometidos pelos cangaceiros eram comuns no sertão. A diferença era quem os cometia.
Acontece que nossas elites e os que se sentem próximos a elas, odeiam quando o povo resolve agir abolindo as leis que essas elites fizeram para se proteger. Assim que hoje em dia um traficante de drogas é mostrado como o pior dos celerados quando não faz mais que imitar o modelo de negócios dos grandes cartéis de armas, de bebidas ou de agrotóxicos. É na violência policial que busca inspiração para seus atos de repressão e punição para os que tentam enfrenta-los. Na corrupção do estado se ampara, na ausência do estado, reina.
Quando o Capitão Virgulino Ferreira resolveu ser o governador do sertão nada mais fez do que assumir as funções para as quais estava mais apto que os eleitos por currais eleitorais. Tinha a força das armas e o sentimento popular via nele o justiceiro de que carecia o sertão. É certo que espalhava o terror e uma traição era cobrada com requintes de crueldade exemplar. Mas o fato é que tanto no sertão como nas favelas, o poder estabelecido pela sociedade é muito mais cruel, sua presença só se faz notar quando reprime, humilha, segrega.
A rebeldia popular nem de longe se parece com o ideal romântico dos que querem orientá-la, conduzi-la. Não é uma força libertária, não busca alianças estratégicas. Apenas entra no jogo para ganhar. Não apóia a greve dos professores nem quer um meio ambiente sustentável. Não se importa com a imagem do país no exterior, não pensa num futuro melhor para as gerações vindouras. Quer afirmar-se como força social, anárquica e caótica.
A resposta da sociedade estabelecida é, e sempre será, a repressão. O melhor exemplo disso é Canudos. Os crimes ali cometidos tiveram total apoio social desde o início, quando as primeiras forças da ordem foram dar fim aos sertanejos que desafiavam a república e seus ditames. Nas cidades, cidadãos bem pensantes estavam plenamente convencidos que o extermínio de mulheres e crianças serviria para que a sociedade moderna e progressista seguisse seu passo. Os seguidores do Conselheiro seriam o atraso, o empecilho para que a nação confirmasse seu destino.
No caso dos cangaceiros havia que retomar o monopólio da crueldade, do estupro, da degola. Claro que as mocinhas brancas estariam em segurança, os negociantes poderiam seguir pondo preço na fome, os coronéis continuariam seu reinado despótico. Tanto em Canudos como no fim do Cangaço, cabeças foram cortadas mas isso não impediu grande regozijo das elites da época e dos que dela se sentiam próximos.
Hoje, mesmo que as polícias pacificadoras continuem matando meninos nos morros e favelas, as grandes redes de televisão seguirão fazendo reportagens elogiando o serviço de "limpeza". Armas e drogas serão prontamente exibidas para mostrar a todos que o morto era traficante e ousou enfrentar a polícia assim como Lampião enfrentava os macacos das volantes.
A verdadeira história de Canudos já pode ser contada sem encher de pejo a sociedade que se vê distante do terrível massacre. O culto a Lampião e seus seguidores é franco entre os sertanejos pobres embora, para não deitar idéias, os bem formados continuem louvando os que cortaram suas cabeças.
Os traficantes das favelas seguem sendo mostrados como a própria encarnação do mal e sua imagem associada à degeneração do tecido social. Os assaltantes de joalherias e os arrombadores de caixas bancárias aparecem no horário nobre da TV como inimigos públicos de primeira linha. Querem fazer crer que os investimentos em segurança aumentam o custo Brasil e praticamente explicam o alto valor das taxas cobradas pelos bancos de seus correntistas.
A recente publicação de pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, nos dá uma idéia de como a sociedade brasileira vê aqueles que ameaçam seus bens. Se em 1999, 71,2% da população rejeitava o uso da tortura pelas forças de repressão, em 2010 esse número caiu para 52,5%. Quase metade da população brasileira apóia o uso da tortura pela polícia para “investigar” crimes.
Ora, a tortura é muito mais um ato de punição do que outra coisa e a sociedade sabe bem disso. Sabe e concorda. O que assusta nesse número, é que cada vez mais pessoas aderem ao pensamento repressor das elites. Isso talvez advenha do crescimento da classe média em nosso país. Cada vez mais pessoas têm o que perder e o ladrão de carros recebe uma carga de ódio que não vemos sendo dirigida ao estuprador ou ao pedófilo.
Certamente os programas televisivos de cunho policialesco têm sua parcela de responsabilidade quando, na corrida por índices de audiência, chegam às raias da insanidade com seus apresentadores e “repórteres” falando da impunidade dos bandidos.  Fato que a superpopulação carcerária desmente. Mediante a suposta impunidade, que os ditos programas proclamam como falha da justiça e não da valorosa polícia, a tortura teria o condão de punir aqueles que atentam contra o patrimônio. Pois disso se trata.
Os crimes contra a vida têm menos repercussão na TV que assaltos a joalherias de “shoppings” ou explosões de caixas eletrônicos. Nesses casos sempre é destacada a ousadia dos bandidos como uma ofensa à sociedade. Chacinas cometidas por milícias e grupos de extermínio ocupam os poucos minutos que são necessários para criminalizar as vítimas. Os mortos são tratados, invariavelmente, como pessoas ligadas ao tráfico de drogas ou viciados. Ajuste de contas é o veredicto dado por “jornalistas” e policiais enquanto os corpos ainda estão no chão de bares e biroscas da periferia.
Canudos e o Cangaço teriam muito que ensinar mas para isso a sociedade teria de deixar de ver pobres e favelados como rebotalho social.




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