Comentando os 100 anos do
naufrágio do Titanic, Luis Fernando Veríssimo nos fala de uma cidade que foi
porto de escala da trágica travessia, Cherbourg. Lá, também, a cobertura da
imprensa sobre o centenário do desastre foi quase tão grande quanto a que foi
feita por ocasião do lançamento ao mar da nave indestrutível. O escritor
visitou na cidade uma exposição dedicada ao navio. Gostou.
Veríssimo fala, em sua crônica,
das metáforas que podem ser feitas a partir do Titanic e seu destino. Ao fim,
nos diz que no rádio do carro que usava na cidade francesa, tocava “Ai se eu te pego”._ “Simbolizando,
pensando bem, nada”.
Semana passada, enquanto aguardava o jogo
entre Brasil e Dinamarca, assisti a reportagem feita na entrada do estádio com
torcedores dinamarqueses. Nesse tipo de jogo, realizado fora dos países dos
contendores e com ingressos caríssimos, não há torcedores tradicionais e sim
turistas que pouco ou nada manjam do esporte. Os dinamarqueses entrevistados
sequer conheciam Tiago Silva ou David Luis, estrelas internacionais, mas
cantavam, em português, “Ai se eu te pego”.
Na TV portuguesa, num desses
programas sobre decoração de interiores, o tema de encerramento, quando são
mostrados os móveis e tapetes que foram os protagonistas do episódio, é “Ai se
eu te pego”. A “música” está em primeiro lugar na parada de sucessos (será que
ainda se usa esse termo?) de Praga. Também já ouvimos seus (seu?) acordes num vídeo
clip israelense que, pelo menos, era satírico.
Um locutor esportivo daqui, que
não merece ser citado nem viver, tenta fazer dos “versos” cantados por Teló, um
bordão, e os repete inúmeras vezes durante a transmissão dos jogos de futebol.
Já não se pode tentar ignorar o
fenômeno e aqui tenho de discordar do grande Veríssimo. Creio que a ascensão (e
futura queda) de Michel Teló pode simbolizar muitas coisas do mundo e do tempo
em que vivemos.
Como um produto de tão má
qualidade pode se tornar referência para milhões (bilhões?) de pessoas ao redor
do mundo? Poucos anos atrás sua repercussão estaria restrita ao território
nacional, alojada num nicho do mercado fonográfico onde estariam outros
produtos da mesma natureza catalogados com o rótulo “abaixo da crítica”. O
fenômeno se deu graças, principalmente, à internet e sua capacidade de gerar
fatos e factóides. Os vídeos e postagens virais fazem com que milhões embarquem
na primeira canoa furada que passe. No caso de Teló e sua “produção artística”,
o mal causado é de menor importância. A imbecilização provocada só causa danos
no indivíduo e por curto período. Como efeito secundário, apenas uma histeria coletiva que se
desinflará pela ação do tempo e do pouco oxigênio que carrega. Passados alguns
anos e será lembrada como uma gripe forte, um surto de dengue. A Macarena e o
Mister M estão aí para não me deixar mentir. Mas há pior.
“Ai se eu te pego” (minhas aspas
já estão acabando) nos fala de algo mais sinistro e destrutivo: O poder de se
disseminar a loucura e a insensibilidade usando-se da mais maravilhosa das
tecnologias de comunicação.
A cada dia que abrimos o
facebook ou algo parecido, nos deparamos com o maior surto de tolices que a
humanidade já conheceu. As idéias mais absurdas, os comentários mais imbecis, o
compartilhamento de imagens de bichinhos para decorar frases feitas, o
horóscopo, o horóscopo chinês, o calendário maia, o catastrofismo dos bio
desagradáveis, as charges de segunda categoria, enfim, todo um universo difícil
de engolir sem sentir as náuseas da saturação. E o pior é que está apenas
começando.
Já imaginou se Hitler contasse
com a internet quando começou seu “ai se eu te pego” com os judeus e outros
povos tidos como daninhos à sociedade alemã? Pois pare de imaginar. As redes
sociais, que colocaram no imaginário popular a idéia de que foram importantes
na derrubada de líderes indesejáveis no oriente médio e no norte da África,
hoje guardam sepulcral silêncio sobre o novo inferno líbio, a xenofobia
européia, a farsa eleitoral egípcia, a degradação da Grécia, o crescimento da
extrema direita na Europa. Sobre Guantánamo, nem uma palavra. O maior campo de
concentração do ocidente, desde a segunda guerra, continua propagando que usa
tortura sim, e daí? Não há ação espontânea
de indivíduos indignados nem solidariedade internacional. Anonymous está mudo.
“Ai se eu te pego” é um sinal
dos tempos. De um tempo onde tudo é possível. A mentira mais deslavada não
dorme em secretas alcovas, não se esconde em porões, não se envergonha. Assim
como a música infeliz, ela se espraia na maré alta e você nem nota ou quando
nota, ela já viajou para ser primeiro lugar na parada de sucessos de Praga.
Michel Teló é um profeta que
veio anunciar o reino de Steve Jobs. “Ele voltará e se sentará à direita de
Bill Gates”
Primo irmão de Luan Santana,
neto de Sidnei Magal e filho da puta, o sertanejo universitário, graças a Zuckerberg,
(o espírito santo da trindade cu de ferro), deixou claro que tudo é possível se
a cara é de pau. Basta postar.
Outros fazem o mesmo que Teló, e
de graça. Inundam o mundo virtual com suas tolices. Mesmo sem ter um milhão de
amigos e bem mais forte poder cantar, fico estupefato como as mesmas bobagens
me chegam das mais diversas fontes e em idiomas variados. A última foi uma que
esclarece que eu não sei de nada e que se uma eleição tiver 51% de votos nulos,
ela será anulada e que os políticos envolvidos na disputa inválida não podem
mais concorrer. É a terceira ou quarta vez que leio essa mensagem no facebook
postada por gente que nada tem de maldosa. Estão entre meus amigos ou são
amigos destes.
Outra postagem faz referência às
falcatruas dos sorteios de mega-senas e afins e também afirma que eu não sei de
nada. Garante que uma denúncia foi veiculada no jornal da Record ou do SBT. Na
Globo não. Fala de importantes figuras políticas metidas na roubalheira mas não
dá nomes. A estória é mal ajambrada e torpe mas mesmo assim as pessoas passam-na adiante.
Também constante nas
redes sociais são as figuras da já citada santíssima trindade; Jobs, Gates e Zuckerberg.
Seus ensinamentos sobre a vida, o destino da humanidade, o aquecimento global e
a procriação de artrópodes, são repassados como vírus. Os ateus os exibem
orgulhosos, símbolos do livre pensamento. Os que crêem vêem Jobs como um mártir
da fé. São os tempos.
Vladimir Ilitch Ulianov, o
Lênin, depois que assistiu o Encouraçado Potenkin, ficou fascinado e previu um
futuro maravilhoso. Ficou amigo de Eisenstein e sonhou com a conscientização do
proletariado através do cinema. Hoje Bruce Willis e Mel Gibson lhe dariam uma
chave de braço e o jogariam na realidade. Quem viu o nascer da internet e
pensou nas possibilidades infinitas que a tecnologia trazia no ventre, vê-se
diante do fato de que entre quatro arquivos baixados, três são de jogos
eletrônicos. 75%. Dos 25% restantes Michel Teló tem grande parcela. Um clip com
sua “obra” já alcançou 100 milhões de visualizações no youtube. Antes do
similar com versão em inglês.
A televisão, que desde seus
começos foi ruim, e por isso não frustrou tanto como as outras tecnologias,
hoje também se rende aos joguinhos da internet. Há, na TV fechada, um canal
especializado no tema. Durante a triste programação vemos jovens de 20 e poucos
anos interessadíssimos no assunto. Discutem os tais joguinhos como alguém sadio
discutiria a fome no mundo ou a crise européia. Aos 20 e poucos anos estão
nessa. Nem quero imaginar sua vida sexual. Dá medo.
O fenômeno Michel Teló, como
vimos, é o menor dos males mas “Ai se eu te pego” já encheu o saco.
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