domingo, 3 de junho de 2012

Ai se eu te pego







Comentando os 100 anos do naufrágio do Titanic, Luis Fernando Veríssimo nos fala de uma cidade que foi porto de escala da trágica travessia, Cherbourg. Lá, também, a cobertura da imprensa sobre o centenário do desastre foi quase tão grande quanto a que foi feita por ocasião do lançamento ao mar da nave indestrutível. O escritor visitou na cidade uma exposição dedicada ao navio. Gostou.
Veríssimo fala, em sua crônica, das metáforas que podem ser feitas a partir do Titanic e seu destino. Ao fim, nos diz que no rádio do carro que usava na cidade francesa, tocavaAi se eu te pego”._ “Simbolizando, pensando bem, nada”.
 Semana passada, enquanto aguardava o jogo entre Brasil e Dinamarca, assisti a reportagem feita na entrada do estádio com torcedores dinamarqueses. Nesse tipo de jogo, realizado fora dos países dos contendores e com ingressos caríssimos, não há torcedores tradicionais e sim turistas que pouco ou nada manjam do esporte. Os dinamarqueses entrevistados sequer conheciam Tiago Silva ou David Luis, estrelas internacionais, mas cantavam, em português, “Ai se eu te pego”.
Na TV portuguesa, num desses programas sobre decoração de interiores, o tema de encerramento, quando são mostrados os móveis e tapetes que foram os protagonistas do episódio, é “Ai se eu te pego”. A “música” está em primeiro lugar na parada de sucessos (será que ainda se usa esse termo?) de Praga. Também já ouvimos seus (seu?) acordes num vídeo clip israelense que, pelo menos, era satírico.
Um locutor esportivo daqui, que não merece ser citado nem viver, tenta fazer dos “versos” cantados por Teló, um bordão, e os repete inúmeras vezes durante a transmissão dos jogos de futebol.
Já não se pode tentar ignorar o fenômeno e aqui tenho de discordar do grande Veríssimo. Creio que a ascensão (e futura queda) de Michel Teló pode simbolizar muitas coisas do mundo e do tempo em que vivemos.
Como um produto de tão má qualidade pode se tornar referência para milhões (bilhões?) de pessoas ao redor do mundo? Poucos anos atrás sua repercussão estaria restrita ao território nacional, alojada num nicho do mercado fonográfico onde estariam outros produtos da mesma natureza catalogados com o rótulo “abaixo da crítica”. O fenômeno se deu graças, principalmente, à internet e sua capacidade de gerar fatos e factóides. Os vídeos e postagens virais fazem com que milhões embarquem na primeira canoa furada que passe. No caso de Teló e sua “produção artística”, o mal causado é de menor importância. A imbecilização provocada só causa danos no indivíduo e por curto período. Como efeito secundário, apenas uma histeria coletiva que se desinflará pela ação do tempo e do pouco oxigênio que carrega. Passados alguns anos e será lembrada como uma gripe forte, um surto de dengue. A Macarena e o Mister M estão aí para não me deixar mentir. Mas há pior.
“Ai se eu te pego” (minhas aspas já estão acabando) nos fala de algo mais sinistro e destrutivo: O poder de se disseminar a loucura e a insensibilidade usando-se da mais maravilhosa das tecnologias de comunicação.
A cada dia que abrimos o facebook ou algo parecido, nos deparamos com o maior surto de tolices que a humanidade já conheceu. As idéias mais absurdas, os comentários mais imbecis, o compartilhamento de imagens de bichinhos para decorar frases feitas, o horóscopo, o horóscopo chinês, o calendário maia, o catastrofismo dos bio desagradáveis, as charges de segunda categoria, enfim, todo um universo difícil de engolir sem sentir as náuseas da saturação. E o pior é que está apenas começando.
Já imaginou se Hitler contasse com a internet quando começou seu “ai se eu te pego” com os judeus e outros povos tidos como daninhos à sociedade alemã? Pois pare de imaginar. As redes sociais, que colocaram no imaginário popular a idéia de que foram importantes na derrubada de líderes indesejáveis no oriente médio e no norte da África, hoje guardam sepulcral silêncio sobre o novo inferno líbio, a xenofobia européia, a farsa eleitoral egípcia, a degradação da Grécia, o crescimento da extrema direita na Europa. Sobre Guantánamo, nem uma palavra. O maior campo de concentração do ocidente, desde a segunda guerra, continua propagando que usa tortura sim, e daí?  Não há ação espontânea de indivíduos indignados nem solidariedade internacional. Anonymous está mudo.
“Ai se eu te pego” é um sinal dos tempos. De um tempo onde tudo é possível. A mentira mais deslavada não dorme em secretas alcovas, não se esconde em porões, não se envergonha. Assim como a música infeliz, ela se espraia na maré alta e você nem nota ou quando nota, ela já viajou para ser primeiro lugar na parada de sucessos de Praga.
Michel Teló é um profeta que veio anunciar o reino de Steve Jobs. “Ele voltará e se sentará à direita de Bill Gates”
Primo irmão de Luan Santana, neto de Sidnei Magal e filho da puta, o sertanejo universitário, graças a Zuckerberg, (o espírito santo da trindade cu de ferro), deixou claro que tudo é possível se a cara é de pau. Basta postar.
Outros fazem o mesmo que Teló, e de graça. Inundam o mundo virtual com suas tolices. Mesmo sem ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar, fico estupefato como as mesmas bobagens me chegam das mais diversas fontes e em idiomas variados. A última foi uma que esclarece que eu não sei de nada e que se uma eleição tiver 51% de votos nulos, ela será anulada e que os políticos envolvidos na disputa inválida não podem mais concorrer. É a terceira ou quarta vez que leio essa mensagem no facebook postada por gente que nada tem de maldosa. Estão entre meus amigos ou são amigos destes.
Outra postagem faz referência às falcatruas dos sorteios de mega-senas e afins e também afirma que eu não sei de nada. Garante que uma denúncia foi veiculada no jornal da Record ou do SBT. Na Globo não. Fala de importantes figuras políticas metidas na roubalheira mas não dá nomes. A estória é mal ajambrada e torpe mas mesmo assim as pessoas passam-na adiante.
Também constante nas redes sociais são as figuras da já citada santíssima trindade; Jobs, Gates e Zuckerberg. Seus ensinamentos sobre a vida, o destino da humanidade, o aquecimento global e a procriação de artrópodes, são repassados como vírus. Os ateus os exibem orgulhosos, símbolos do livre pensamento. Os que crêem vêem Jobs como um mártir da fé. São os tempos.
Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin, depois que assistiu o Encouraçado Potenkin, ficou fascinado e previu um futuro maravilhoso. Ficou amigo de Eisenstein e sonhou com a conscientização do proletariado através do cinema. Hoje Bruce Willis e Mel Gibson lhe dariam uma chave de braço e o jogariam na realidade. Quem viu o nascer da internet e pensou nas possibilidades infinitas que a tecnologia trazia no ventre, vê-se diante do fato de que entre quatro arquivos baixados, três são de jogos eletrônicos. 75%. Dos 25% restantes Michel Teló tem grande parcela. Um clip com sua “obra” já alcançou 100 milhões de visualizações no youtube. Antes do similar com versão em inglês.
A televisão, que desde seus começos foi ruim, e por isso não frustrou tanto como as outras tecnologias, hoje também se rende aos joguinhos da internet. Há, na TV fechada, um canal especializado no tema. Durante a triste programação vemos jovens de 20 e poucos anos interessadíssimos no assunto. Discutem os tais joguinhos como alguém sadio discutiria a fome no mundo ou a crise européia. Aos 20 e poucos anos estão nessa. Nem quero imaginar sua vida sexual. Dá medo.
O fenômeno Michel Teló, como vimos, é o menor dos males mas “Ai se eu te pego” já encheu o saco.

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