Em seu livro, Viventes das
Alagoas, Graciliano Ramos dedica 7 dos 39 textos ao Cangaço. Em um deles,
intitulado “Dois cangaços”, o escritor compara os primeiros cangaceiros com Lampião e sua gente. A comparação, ainda que sem enfeitar demasiado
os primitivos, deixa o Capitão Virgulino Ferreira em posição
desvantajosa. Em feitos, em honra e mesmo em coragem. Acentua
Graciliano o tamanho dos bandos que de poucos homens ou apenas envolvendo pessoas da mesma família em fins do século 19 e começo do século 20, passou a enormes
colunas chegando, segundo ele, a duzentos combatentes na invasão de Mossoró em 1927
(Graciliano data o episódio em 1926).
Em um momento da narrativa o
autor de Vidas secas, que chegou a pertencer ao Partido Comunista, usa o termo
“rebotalho social”, para referir-se a Lampião e seus cabras. Quando fala das
moças defloradas pelos cangaceiros, se compadece das brancas que “inutilizam-se
para sempre” pois “nenhum sertanejo de família vai ligar-se a uma pessoa
ultrajada” ao contrário das moças da classe baixa que, segundo ele, não se
aviltam por isso e recebem frascos de perfume, cortes de seda e cordões de ouro
e casam-se como se nada houvesse acontecido.
Os crimes cometidos pelo bando
de Lampião são destacados do contexto social do sertão. Temos a impressão,
lendo o relato, que os cangaceiros inventaram a degola, o estupro, a castração,
a mutilação. Essas práticas eram comuns e ainda são embora não cause indignação
quando são perpetradas contra a população pobre, seja do sertão seja da favela.
Graciliano faz um relato
estribado na sua condição de homem da classe média que se sente mais próximo ao
proprietário, ao senhor. Embora condene a situação de penúria do povo
trabalhador e veja nesse fato a origem do cangaço de seu tempo que ele
distingue do cangaço de “origem social” de tempos atrás, não pondera que a
atuação desses homens é apenas reflexo do entorno. Atos como os cometidos pelos
cangaceiros eram comuns no sertão. A diferença era quem os cometia.
Acontece que nossas elites e os
que se sentem próximos a elas, odeiam quando o povo resolve agir abolindo as
leis que essas elites fizeram para se proteger. Assim que hoje em dia um
traficante de drogas é mostrado como o pior dos celerados quando não faz mais
que imitar o modelo de negócios dos grandes cartéis de armas, de bebidas ou de
agrotóxicos. É na violência policial que busca inspiração para seus atos de
repressão e punição para os que tentam enfrenta-los. Na corrupção do estado se
ampara, na ausência do estado, reina.
Quando o Capitão Virgulino
Ferreira resolveu ser o governador do sertão nada mais fez do que assumir as
funções para as quais estava mais apto que os eleitos por currais eleitorais. Tinha
a força das armas e o sentimento popular via nele o justiceiro de que carecia o
sertão. É certo que espalhava o terror e uma traição era cobrada com requintes
de crueldade exemplar. Mas o fato é que tanto no sertão como nas favelas, o
poder estabelecido pela sociedade é muito mais cruel, sua presença só se faz
notar quando reprime, humilha, segrega.
A rebeldia popular nem de longe
se parece com o ideal romântico dos que querem orientá-la, conduzi-la. Não é
uma força libertária, não busca alianças estratégicas. Apenas entra no jogo
para ganhar. Não apóia a greve dos professores nem quer um meio ambiente
sustentável. Não se importa com a imagem do país no exterior, não pensa num
futuro melhor para as gerações vindouras. Quer afirmar-se como força social,
anárquica e caótica.
A resposta da sociedade
estabelecida é, e sempre será, a repressão. O melhor exemplo disso é Canudos.
Os crimes ali cometidos tiveram total apoio social desde o início, quando as
primeiras forças da ordem foram dar fim aos sertanejos que desafiavam a
república e seus ditames. Nas cidades, cidadãos bem pensantes estavam
plenamente convencidos que o extermínio de mulheres e crianças serviria para
que a sociedade moderna e progressista seguisse seu passo. Os seguidores do
Conselheiro seriam o atraso, o empecilho para que a nação confirmasse seu
destino.
No caso dos cangaceiros havia
que retomar o monopólio da crueldade, do estupro, da degola. Claro que as
mocinhas brancas estariam em segurança, os negociantes poderiam seguir pondo
preço na fome, os coronéis continuariam seu reinado despótico. Tanto em Canudos
como no fim do Cangaço, cabeças foram cortadas mas isso não impediu grande
regozijo das elites da época e dos que dela se sentiam próximos.
Hoje, mesmo que as polícias
pacificadoras continuem matando meninos nos morros e favelas, as grandes redes
de televisão seguirão fazendo reportagens elogiando o serviço de "limpeza". Armas
e drogas serão prontamente exibidas para mostrar a todos que o morto era
traficante e ousou enfrentar a polícia assim como Lampião enfrentava os macacos
das volantes.
A verdadeira história de Canudos
já pode ser contada sem encher de pejo a sociedade que se vê distante do
terrível massacre. O culto a Lampião e seus seguidores é franco entre os
sertanejos pobres embora, para não deitar idéias, os bem formados continuem
louvando os que cortaram suas cabeças.
Os traficantes das favelas
seguem sendo mostrados como a própria encarnação do mal e sua imagem associada
à degeneração do tecido social. Os assaltantes de joalherias e os arrombadores
de caixas bancárias aparecem no horário nobre da TV como inimigos públicos de
primeira linha. Querem fazer crer que os investimentos em segurança aumentam o
custo Brasil e praticamente explicam o alto valor das taxas cobradas pelos
bancos de seus correntistas.
A recente publicação de pesquisa feita pelo
Núcleo de Estudos da Violência da USP, nos dá uma idéia de como a sociedade
brasileira vê aqueles que ameaçam seus bens. Se em 1999, 71,2% da população
rejeitava o uso da tortura pelas forças de repressão, em 2010 esse número caiu
para 52,5%. Quase metade da população brasileira apóia o uso da tortura pela
polícia para “investigar” crimes.
Ora, a tortura é muito mais um
ato de punição do que outra coisa e a sociedade sabe bem disso. Sabe e
concorda. O que assusta nesse número, é que cada vez mais pessoas aderem ao
pensamento repressor das elites. Isso talvez advenha do crescimento da classe
média em nosso país. Cada vez mais pessoas têm o que perder e o ladrão de
carros recebe uma carga de ódio que não vemos sendo dirigida ao estuprador ou
ao pedófilo.
Certamente os programas
televisivos de cunho policialesco têm sua parcela de responsabilidade quando,
na corrida por índices de audiência, chegam às raias da insanidade com seus
apresentadores e “repórteres” falando da impunidade dos bandidos. Fato que a superpopulação carcerária desmente.
Mediante a suposta impunidade, que os ditos programas proclamam como falha da
justiça e não da valorosa polícia, a tortura teria o condão de punir aqueles
que atentam contra o patrimônio. Pois disso se trata.
Os crimes contra a vida têm
menos repercussão na TV que assaltos a joalherias de “shoppings” ou explosões
de caixas eletrônicos. Nesses casos sempre é destacada a ousadia dos bandidos
como uma ofensa à sociedade. Chacinas cometidas por milícias e grupos de extermínio
ocupam os poucos minutos que são necessários para criminalizar as vítimas. Os
mortos são tratados, invariavelmente, como pessoas ligadas ao tráfico de drogas
ou viciados. Ajuste de contas é o veredicto dado por “jornalistas” e policiais
enquanto os corpos ainda estão no chão de bares e biroscas da periferia.
Canudos e o Cangaço teriam muito
que ensinar mas para isso a sociedade teria de deixar de ver pobres e favelados
como rebotalho social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário