Logo de manhã, antes do primeiro roliúde, minha consciência me perguntava: _Vous êtes
Charlie? Pois é, minha consciência deu de falar em francês e me trata por vous
toda cheia de cerimônias e frescuras. Ainda era cedo e fui enrolando a
inoportuna: _ Eh, veja bem...
A verdade é que ando pensando em outras coisas e essa do
Charlie Hebdo me pegou desprevenido. Resolvi procurar por aí quem era Charlie e
quem não era. Faço isso há muito tempo quando não sei o que pensar sobre
determinado tema. Por exemplo: outro dia houve um movimento de pescadores que
fechou um porto em Santa Catarina. O protesto era contra a proibição da pesca
de certos peixes que estariam em risco de extinção. Como não sabia a quem dar
razão, se aos órgãos ambientais ou aos pescadores, fui buscar a opinião do Luis
Carlos Prates. Sempre vou estar a favor do que ele é contra e vice versa. Não
tem erro, o sujeito é o protótipo do fascista. Não há um só tema que eu
concorde com ele, sabendo do que se trate ou não. Minha consciência fecha a
cara quando apelo para essas simplificações. Mas fazer o quê? Não posso agradar
toda a psique de uma vez.
No caso francês li que Jean Marie Le Pen fizera um
pronunciamento dizendo que não era Charlie. Embora os cartunistas tenham sido
vítimas de muçulmanos que são as vítimas preferenciais de Le Pen e de seus
seguidores, que têm na anti-imigração e na xenofobia suas bandeiras mais
reconhecíveis, Le Pen se manteve coerente: é contra tudo que não tenha pelo
menos dois tataravós franceses.
Por sua vez os homens que assassinaram os cartunistas
comungam com as idéias da direita francesa e da direita em geral quando se
trata de homossexualidade, aborto, drogas, sexo, pornografia e outros temas. Até
no mesmo deus acreditam.
A esquerda que prega a laicidade do estado deu de acusar o
Charlie Hebdo de abusar do direito à livre expressão, de não respeitar a religião
muçulmana e de fazer pilhérias gratuitas com o profeta Maomé.
Mas qual seria a
barreira? Qual seria a linha intransponível da sátira? A sensibilidade daqueles
que tratam mulheres como propriedade e que não admitem críticas à sua religião?
Num momento em que a onda racista e
xenófoba cresce na França, dando inclusive reais chances de vitória ao partido
de Marine Le Pen nas próximas eleições presidenciais, talvez essa linha seja o
bom senso. Não dar munição aos verdadeiros inimigos da sociedade, que no caso
francês é a extrema direita e não os muçulmanos e suas crenças, talvez fosse a
direção correta a seguir. Mas enfim...
O único que pude dizer à minha consciência foi que tudo isso
me parece um bundalelê dos diabos. Minha consciência saiu batendo a porta.
_Merde.
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