quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O lado certo



                Naqueles tempos, viadutos, tetos de mercados, galpões e outras construções caiam sobre a população com incrível constância. Pensei que disso se tratava quando escutei o sinal sonoro que as emissoras de TV usam para seus informes extraordinários. 
                Daquela vez, não era nossa construção civil que mobilizava os meios de comunicação com mais uma tragédia. Era um pronunciamento oficial. Isso também era comum naqueles tempos bicudos; quando menos esperávamos caia sobre nós, como viadutos, um pronunciamento que tinha o condão de nos afastar mais ainda da esperança.
                Naquele dia era o próprio Ministro da Justiça, Armando Falcão, que vinha assustar criancinhas e falar de mais uma façanha do regime militar. Após um preâmbulo, repleto da mais estúpida cantilena verde oliva, Falcão entrou nos finalmentes e apresentou três jovens prisioneiros do regime. Eles vinham renunciar à luta armada e mostrar arrependimento pelos atos “terroristas” que haviam praticado. Cada um deu seu depoimento, abjurando de ideais e questionando a postura moral dos seus antigos comandantes. Lembro-me bem de um deles falando de Lamarca.
                Depois de encerrada a rede nacional convocada pelo sinistro Ministro, fiquei pensando que terríveis torturas deviam ter sofrido aqueles três rapazes para perpetrar aquela  traição. Eu era muito jovem e pensava a vida nesses termos.
                Passados mais de trinta anos daquele episódio, vi de novo os três jovens, ou melhor, dois deles, e já não eram jovens. Foi num programa jornalístico que mostrava aquela mesma cena que eu vira no passado e entrevistava os protagonistas nos dias que corriam.
                Para minha surpresa, soube que as declarações que eles haviam prestado nos idos de 70, não foram conseguidas através da tortura, que as fizeram por iniciativa própria. As torturas já haviam sido praticadas, o tempo de cárcere já se alastrava. Apenas haviam mudado de opinião quanto aos atos e fatos de seu passado guerrilheiro.
                Quando foi exibido o programa, um deles já havia se suicidado. Outro mudara totalmente de lado, e tornara-se seguidor das idéias de Plínio Salgado. Cultuava a figura e os ensinamentos do integralista numa garagem.
                O terceiro levava vida simples num sítio em companhia da mãe. Pobres, ele era o faz tudo do sítio. Segundo contou, a única fonte de renda fixa dos dois era a aposentadoria que recebia sua mãe. No mais, a incerteza.
                Seu depoimento não trazia revelações bombásticas. Não tinha o tom pungente dos familiares do suicida nem a verborragia do fanatizado neo-integralista. Reafirmava o desencanto que experimentara na prisão e que o fizera abjurar em rede nacional, precedido por Armando Falcão.
                O jornalista que o entrevistou, perguntou-lhe se não havia pedido indenização como vítima da ditadura. O ex-guerrilheiro disse que não, que havia sido travada uma guerra, um lado venceu, o outro foi derrotado. Ele não encontrava motivo para os vencidos pedirem indenização ao estado. Ficava claro que ele não via moralidade naquilo.
                Quando essa entrevista foi concedida, vivíamos uma azáfama reparatória. Gente que ainda usava calças curtas quando findou o regime autoritário, corria aos tribunais pedindo compensações pelas perseguições que nunca sofrera. Órgãos de classe ajudavam a perpetrar o assalto aos cofres públicos. Grandes somas de dinheiro e pensões vitalícias foram distribuídas a todos aqueles cujo oportunismo suplantou em muito a dignidade.
                Ao contrário de muitos, aquele ex-guerrilheiro mantinha sua coerência de combatente. Fez o que achou que devia ser feito em dois momentos cruciais da vida do país. Momentos em que era preciso decidir estar do lado da dignidade ou não.





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