Naqueles tempos,
viadutos, tetos de mercados, galpões e outras construções caiam sobre a
população com incrível constância. Pensei que disso se tratava quando escutei o
sinal sonoro que as emissoras de TV usam para seus informes
extraordinários.
Daquela vez, não era nossa construção civil que mobilizava
os meios de comunicação com mais uma tragédia. Era um pronunciamento oficial.
Isso também era comum naqueles tempos bicudos; quando menos esperávamos caia
sobre nós, como viadutos, um pronunciamento que tinha o condão de nos afastar
mais ainda da esperança.
Naquele dia era o próprio Ministro da Justiça, Armando
Falcão, que vinha assustar criancinhas e falar de mais uma façanha do regime
militar. Após um preâmbulo, repleto da mais estúpida cantilena verde oliva,
Falcão entrou nos finalmentes e apresentou três jovens prisioneiros do regime.
Eles vinham renunciar à luta armada e mostrar arrependimento pelos atos
“terroristas” que haviam praticado. Cada um deu seu depoimento, abjurando
de ideais e questionando a postura moral dos seus antigos comandantes.
Lembro-me bem de um deles falando de Lamarca.
Depois de encerrada a rede nacional convocada pelo sinistro
Ministro, fiquei pensando que terríveis torturas deviam ter sofrido
aqueles três rapazes para perpetrar aquela traição. Eu era muito jovem e pensava a vida
nesses termos.
Passados mais de trinta anos daquele episódio, vi de novo os
três jovens, ou melhor, dois deles, e já não eram jovens. Foi num programa
jornalístico que mostrava aquela mesma cena que eu vira no passado e
entrevistava os protagonistas nos dias que corriam.
Para minha surpresa, soube que as declarações que eles
haviam prestado nos idos de 70, não foram conseguidas através da tortura, que
as fizeram por iniciativa própria. As torturas já haviam sido praticadas, o
tempo de cárcere já se alastrava. Apenas haviam mudado de opinião quanto aos
atos e fatos de seu passado guerrilheiro.
Quando foi exibido o programa, um deles já havia se
suicidado. Outro mudara totalmente de lado, e tornara-se seguidor das idéias
de Plínio Salgado. Cultuava a figura e os ensinamentos do integralista numa
garagem.
O terceiro levava vida simples num sítio em companhia da
mãe. Pobres, ele era o faz tudo do sítio. Segundo contou, a única fonte de
renda fixa dos dois era a aposentadoria que recebia sua mãe. No mais, a
incerteza.
Seu depoimento não trazia revelações bombásticas. Não tinha
o tom pungente dos familiares do suicida nem a verborragia do fanatizado neo-integralista.
Reafirmava o desencanto que experimentara na prisão e que o fizera abjurar em
rede nacional, precedido por Armando Falcão.
O jornalista que o entrevistou, perguntou-lhe se não havia
pedido indenização como vítima da ditadura. O ex-guerrilheiro disse que não,
que havia sido travada uma guerra, um lado venceu, o outro foi derrotado. Ele
não encontrava motivo para os vencidos pedirem indenização ao estado. Ficava
claro que ele não via moralidade naquilo.
Quando essa entrevista foi concedida, vivíamos uma azáfama
reparatória. Gente que ainda usava calças curtas quando findou o regime autoritário,
corria aos tribunais pedindo compensações pelas perseguições que nunca sofrera.
Órgãos de classe ajudavam a perpetrar o assalto aos cofres públicos. Grandes somas
de dinheiro e pensões vitalícias foram distribuídas a todos aqueles cujo
oportunismo suplantou em muito a dignidade.
Ao contrário de muitos, aquele ex-guerrilheiro mantinha sua
coerência de combatente. Fez o que achou que devia ser feito em dois momentos
cruciais da vida do país. Momentos em que era preciso decidir estar do lado da
dignidade ou não.
Nenhum comentário:
Postar um comentário